E era a chegada a hora de satirizar o universo das Escolas de Samba, 
seus Sambas-enredo com temas históricos, e outros maneirismos típicos 
desse mundo. E o Laert e o o Carlos Melo não economizaram nessa sátira,
 indo mexer em um vespeiro muito perigoso, pois o personagem a ser 
homenageado nesse "samba-enredo" tratava-se de um ícone da direita brasileira, fundador de uma organização ultra católica, e ligada à direita radical. Em tempos 
ainda de autoritarismo, embora abrandado, e a caminhar para o final, não seria 
de bom tom fazer uma sátira assim, tão acintosa com uma organização muito 
ativa naquela ocasião, e famosa pela sua militância forte nas ruas. Mas a
 letra foi aprovada na censura (inacreditável que tenha passado !), e nós 
passamos a executá-la nos shows. Mais para a frente, relatarei os 
problemas que tivemos por conta disso. 
E a música era hilária... Laert 
interpretava o "puxador do samba", ao cantá-la mediante todos os clichês típicos dos 
desfiles do carnaval, a arrancar gargalhadas histéricas da plateia. O 
Pituco atuava como, "cabrocha", a dançar, ou melhor, sambar, com aqueles
 trejeitos todos, e reforçava o vocal no refrão. O Lizoel fazia o 
músico do cavaquinho, e a ideia inicial fora que todos os demais tocassem 
instrumentos de percussão para reforçar a batucada, ao dispensar o uso 
de baixo, guitarras e teclados. E o João Lucas interpretava a figura do
porta-bandeira, com o ator, Paulo Elias, a atuar como o mestre-de-cerimônias. Mas aí entrava o detalhe picante, pois a bandeira da escola era um 
estandarte da tal organização, igual ao que seus membros usavam nas manifestações de
 rua que promoviam desde os anos 1960, muito comum pelo menos aqui em São 
Paulo. O João entrava em cena a trajar terno e gravata, o que aumentava a ironia e o 
Paulo Elias usava uma fantasia desse universo do carnaval mesmo, para dar o contraste. Ao 
longo dos shows, eu tive uma ideia cênica, que apresentei ao grupo e foi
 aceita. Inclusive essa performance que eu fazia, tornou-se tão engraçada 
que realmente acrescentou muito ao número, e uma vez, no futuro, já em 1984, em um show realizado no Rio de 
Janeiro, recebi elogios de um diretor de teatro, que pensou que eu fosse
 ator. Não sou, é claro, mas nessa performance eu acho que convenci. 
Foi o seguinte : como nos primeiros shows eu tocava burocraticamente um agogô, que pouco acrescentava à batucada, tive a ideia em evoluir pelo palco, a tocar uma ridícula caixa de fósforos, o que sugeria uma imensa ironia, perante uma suposta bateria ensurdecedora de escola de samba. Eu circulava como se estivesse a evoluir na avenida, fazia performance de mise-en-scené com a "cabrocha", Pituco, e às vezes imitava aqueles organizadores de desfile, que ficam a gritar como se fossem treinadores de futebol, para que os integrantes não dispersem. Eu fazia essa palhaçada toda e via as pessoas a cutucar-se mutuamente para mostrar a minha evolução com uma ridícula caixa de fósforos, e rir muito de tal galhofa. Fora um grande momento do show e claro, a provocação aos radicais foi apreciada demais pelo público predominantemente universitário e simpatizante de ideais antagônicos. O Língua de Trapo teve tantos problemas por mexer com isso tudo, que após a minha saída definitiva da banda, só foi gravá-la em 1985, com mudanças radicais na letra, sob ameaça de processos pesados. Para não ofender ninguém, e não é a minha intenção, mas apenas relatar essa parte da minha carreira com o Língua de Trapo, vou reproduzir a letra a suprimir as partes que possam ser interpretadas como ofensivas àquela organização.
"Samba-Enredo da... "xxx" (Carlos Melo / Laert 
Sarrumor) 
"XXX" pede passagem, pra mostrar sua bateria 
E seu 
passado de coragem, defendendo a Monarquia 
Salve "YYY", precursor 
da linha-dura 
Grande baluarte da ditadura 
Legislador da Inquisição, 
implacável justiceiro 
Homem de grande erudição, lia Mein Kampf no 
banheiro 
No tribunal de Nuremberg, defendeu o Mussolini 
Sob os 
auspícios do Lindenberg 
E hoje ele se preocupa com a infiltração 
comunista 
No Clero progressista  (e o Lefebvre) 
Levebvre, fiel 
companheiro, incomparável amigo, irrepreensível mentor  
Exerce 
completo fascínio e vai incluindo no "XXX", o genio conservador 
Digno de um poema de Ezra Pound, quer que o Brasil se transforme 
Num
 imenso playground 
No carnaval, a escola comemora o nascimento de 
"YYY" 
E a defesa da tradição, cantando esse refrão : 
Anauê, 
anauê, Anauê, "XXX" acabou de chegar (repete) 
E hoje sou fascista 
na avenida, minha escola é a mais querida 
Dos "reaça" nacional 
(repete) 
Plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim 
Era assim que a vovó o seu "YYY" chamava...  
Bem, o "Anauê", era a 
saudação ritualística do partido integralista, nos anos 1930, semelhante à
 saudação nazista. Para os mais antenados em história, a piada era 
irresistível, ainda mais realçada pelos trejeitos do Laert ao gesticular a 
saudação integralista com o braço. E aqui no relato, omiti as partes 
possivelmente ofensivas à pessoas e organizações, ao grafar as 
onomatopeias "XXX" e "YYY", no lugar.

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