quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Crônicas da Autobiografia - O Multi-Tecladista que não Conhecia Música - Por Luiz Domingues



Aconteceu em 1979, entre o final do Boca do Céu e o início do Língua de Trapo...

Mais ou menos entre julho e setembro de 1979, o Boca do Céu, a minha primeira banda e que havia mudado de nome para Bourréebach no início de 1978, já havia encerrado atividades há meses.
 
Nesse ínterim, ao final de junho e no início de agosto, eu já havia apresentado-me duas vezes com o "Grupo de Poesia e Música da Faculdade Cásper Líbero", que foi, nada mais, nada menos que o embrião do Língua de Trapo. Mas como não havia ainda a firmeza de propósitos para que tal grupo formado por estudantes de jornalismo tornasse-se uma banda e apesar de um de seus articuladores ter sido o meu amigo Laert Julio, vulgo Laert “Sarrumor”, também ex-membro do Boca do Céu, eu coloquei-me aberto a conhecer outros músicos e quem sabe ingressar doravante em uma outra banda montada ou em vias de ser formada. 
 
Pouco tempo mais tarde, por volta de outubro de 1979, o meu amigo  baterista, Cido Trindade convidar-me-ia a ingressar na banda de apoio do cantor/compositor e pianista, Tato Fischer. O que foi na prática, o primeiro trabalho que realizei fora de uma banda autoral, como um clássico “side man”, ou como fala-se em português, “músico de apoio” para acompanhar um artista solo como ele.
Fachada da Escola Estadual de Segundo Grau, Osvaldo Catalano, no bairro do Tatuapé, zona leste de São Paulo, onde eu completei o ensino secundário, em 1979
 
Mas antes disso eu tive uma experiência no mínimo estranha e que não contei no texto da minha autobiografia oficial, porque julguei fora de propósito ali, mas como crônica avulsa, vale a menção.
 
Ocorreu que um conhecido meu da escola (em 1979, eu cursava o 3º ano do curso colegial da Escola Estadual de Segundo Grau, Osvaldo Catalano), que era sabedor da minha luta para tornar-me músico/artista, falou-me que sabia de um rapaz que procurava músicos para a formação de uma banda de Rock. Segundo ele, tal rapaz era tecladista, tinha um excelente nível técnico e teórico, era bem equipado e estava com bastante entusiasmo para trabalhar.
 
Diante do quadro em que eu me encontrava naquele instante, com a minha primeira banda autoral com atividades encerradas e o embrião do que viria a ser o Língua de Trapo ainda bem longe de esboçar ser algo promissor, aceitei o convite e coloquei-me à disposição para conhecer a proposta sonora do rapaz. 
 
Nessa altura, eu havia vencido a barreira inicial do aprendizado musical e longe de ser um músico de qualidade, ao menos sentia-me minimamente seguro para aceitar o desafio de tocar com músicos de melhor nível que o meu, sem passar vergonha. Mesmo que ele fosse muito mais desenvolto e experiente, a minha autoconfiança para tocar, garantiu-me tal prerrogativa.
Anotei o endereço da residência do rapaz, e em um determinado sábado, pelo horário vespertino, lá fui eu com meu intrépido baixo Giannini “RK”, uma imitação grosseira do baixo Rickenbacker, e meu "filho único" então, até as imediações da Avenida Lins de Vasconcelos, onde na sua altura mediana, embrenhei-me por ruas bem arborizadas e com belos sobrados de classe média alta, que formam um bairro chamado: Vila Monumento, encravado entre bairros tradicionais da zona sul de São Paulo, como a Vila Mariana, Aclimação e Cambuci.
 
Fui recebido pelo rapaz, que não mantinha uma aparência Rocker, ao se parecer com um sujeito com outros objetivos e interesses na vida e creiam-me, apesar desses conceitos estarem a ser destruídos violentamente naquele final da década de setenta, tais signos ainda eram bastante significativos para quem envolvia-se com o Rock e claro, a minha escola era totalmente calcada nas estéticas sessenta-setentistas e dessa forma, não foi questão de preconceito, mas de uma sutil demonstração de comprometimento ou não com a causa.
 
Tudo bem, mesmo assim, sem preconceitos e a levar em conta que nem todo Rocker podia vestir-se condizentemente com os padrões de tal estética e usar cabelos longos por questões familiares ou sociais de diversas motivações alheias à sua vontade, todavia, também passou-me pela cabeça que talvez o rapaz fosse mais um daqueles que demonstravam desencanto com tal estética. E se houve época onde isso ocorreu em massa, foi ali entre 1978 e 1981, quando muitos conhecidos e amigos meus correram ao salão de barbearia e rasparam as suas respectivas longas cabeleiras, para cortarem o vínculo com o movimento Hippie. 
Bem, vamos ao ponto desta crônica. Eis que eu cheguei ao endereço, e toquei a campainha da residência em questão.

-“muito prazer, o meu nome é Luiz, sou baixista e quero tocar numa banda de Rock. E você?”
 
Receptivo, porém não de forma efusiva, o rapaz pôs-se a falar de seus propósitos e ao mesmo tempo, ao mostrar-me os seus teclados e equipamento. 
 
Pelos instrumentos ali presentes, de fato eu fiquei muito impressionado. Tratou-se de um arsenal de teclados, daqueles tipicamente setentistas e presentes no meu imaginário Rocker, desde sempre, vistos e revistos em fotos, capas de discos e "promos" de shows das grandes bandas daquela década. O rapaz ligou tudo e só por ouvir aqueles timbres de Mini-Moog, Clavinete, Piano Fender Rhodes e órgão Hammond, já animei-me. 
 
Tocar em uma banda cujo tecladista detinha esse aparato à disposição foi um sonho acalentado desde sempre, certamente.
O rapaz não possuía apenas isso, mas vários amplificadores e um mini PA, a denotar ter um poder aquisitivo bem alto, visto que naquela época, com a importação fechada pela ditadura militar há anos, para ter tudo aquilo em sua posse, com instrumentos e equipamentos de marcas de renome internacional, era preciso muito dinheiro, mesmo.
 
Bem, eu pluguei o meu baixo em um bom amplificador, que eu sonhava ter, mas era inacessível para o meu poder monetário de então, e começamos a tocar, com a minha intenção em propor improvisos a esmo, baseados em exemplos em torno de nomes do Rock nacional e internacional que seriam óbvios naquela situação. Mas aí o imponderável ocorreu...
Genial tecladista do The Nice e Emerson; Lake & Palmer, o grande e hoje saudoso, Keith Emerson

O rapaz continha um bom nível musical, pela técnica que exibia, mas tudo o que eu citava, ele dizia não conhecer. Com aqueles teclados incríveis, como assim não conhecer bandas de Rock Progressivo que usavam ostensivamente aqueles instrumentos em profusão? Achei muito esquisito em princípio. Não sabia quem era Keith Emerson ? 
Na primeira foto, o incrível Jon Lord, hoje saudoso, então em ação com o Deep Purple, nos anos setenta, atacando (literalmente) o órgão Hammond; Segunda foto : um tecladista da pesada e grande guitarrista também, Ken Hensley, atuando nos anos de ouro do Uriah Heep, igualmente "pilotando" o órgão Hammond e um sintetizador, Mini Moog; E na terceira foto, o baixista superb, mas que também era o tecladista do Led Zeppelin, John Paul Jones, nessa foto ao vivo da banda nos anos setenta, tocando um órgão Farfisa
 
Paciência, fomos de Hard Rock, então. O que? Não conhece nenhuma música do Deep Purple? Nem do Uriah Heep? Não conhece Led Zeppelin? Como assim?
Na ordem das três fotos acima : Elton John; Peter Frampton e Rod Stewart, três artistas egressos do Rock britânico, mas que fizeram massivo sucesso pop mainstream, em âmbito mundial na década de setenta
 
Tudo bem, enveredamos para o mundo mais Pop. Que tal Elton John? Peter Frampton, Rod Stewart...
Na primeira foto, os Rolling Stones em ação no ano de 1973, e na segunda, a gravação do LP "Let It Be", dos Beatles, em 1969.
 
Vamos tocar uma dos Rolling Stones, então? Não sabe? Como assim? Beatles, então... não seria possível que não soubesse ao menos tocar "Let It Be" nesse piano! A Jam pôs-se a ficar angustiante...
Genial banda, supra sumo da sofisticação do Jazz-Rock setentista, a "Mahavishnu Orchestra"
 
-“Já sei, você prefere Jazz-Rock. Veja, não tenho nível para isso mas quer tentar Mahavishnu Orchestra? Nunca ouviu falar?”
Grandes ícones da Black Music 1960-1970, na ordem das fotos: Marvin Gaye, Otis Redding, Aretha Franklin, Wilson Pickett, James Brown e Jackson Five 
 
Está bem... pensemos na Black Music, então! Vamos de Marvin Gaye, Otis Redding, Aretha Franklin, Wilson Pickett, James Brown… não? Jackson Five… mas não é possível que não conheça!
Naquela altura ainda bem atual, o disco: "Sábado e Domingo", do "Som Nosso de Cada Dia" mexia com a imaginação dos Rockers tupiniquins, por fazer uma improvável mistura de estilos, entre o Rock Progressivo e o Funk-Rock (e entenda "Funk" como algo completamente desassociado da conotação que a palavra adquiriu anos depois, infelizmente). Vamos tocar um Funk-Rock de uma banda nacional? Conhece o Som Nosso de Cada Dia? E o rapaz nessa hora perguntou-me o que era “Funk”, em uma época em que a palavra “Funk” denotava uma nobre variação musical oriunda da Soul Music etc. e tal.
 
E assim foi, por noventa ou cento e vinte minutos mais ou menos e diante das negativas do rapaz e ele, sob um contraponto surpreendente e bastante desagradável, a propor tocarmos música Pop enlatada de FM, proveniente de artistas irrelevantes que não durariam até o próximo verão. 
 
Esteve explicado então porque esse rapaz não conhecia outras esferas mais nobres da música. Dessa forma, educadamente um disse ao outro que a primeira Jam fora produtiva e que marcaríamos outras até conhecermos outros músicos e formarmos uma banda. Bem, esse foi o tipo de contato que jamais torci para frutificar e acredito que a recíproca foi a mesma da parte dele.
E aquela "tecladeira" toda, hein? No mínimo o sujeito casou-se pouco tempo depois e tudo ficou ali na casa dos seus pais, até um dia em que sua mãe, já idosa e cansada de guardar aquelas “tranqueiras”, ligou para um bazar desses que aceita doações de móveis e objetos velhos e... sorte do músico que enlouqueceu ao comprar um Mini Moog a "preço de banana", achado em um depósito empoeirado assim. 
 
E acredite, isso acontece muito e eu conheço gente muito próxima com quem já toquei por anos a fio em bandas autorais, inclusive, e que já comprou teclado estrangeiro desse porte vintage, em excelente estado de conservação, por um preço ridículo e certamente sem que os responsáveis por tais lojas de objetos usados, façam a menor ideia de seu real valor...

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