sábado, 26 de maio de 2018

Crônicas da Autobiografia - Risadas Inconvenientes ao Tenor com Cesto de Frutas na Cabeça - Por Luiz Domingues

Aconteceu no tempo do Língua de Trapo, por volta de agosto de 1980

Um tipo de acontecimento que é muito desagradável para qualquer artista, é quando alguém (quiçá muita gente na plateia), adota a postura deselegante de debochar acintosamente da sua performance, a tirar-lhe a concentração cênica necessária e mais do que isso, a ofender a sua dignidade artística.  
O que ocorreu-me indiretamente nesse sentido, foi que certa vez, ao voltar de um show do Língua de Trapo, bem no começo das atividades da nossa banda, portanto a viver ainda dias sob um padrão de produção muito simplória, eu estive acompanhado de um rapaz (que participara da nossa apresentação como músico convidado e que por não ser componente da banda, apenas tenha feito uma participação especial naquela ocasião), em um show que assistimos juntos a posteriori, no mesmo dia. 
 
Nós vínhamos de Osasco-SP, município da grande São Paulo, em direção ao centro da capital e quando chegamos ao nosso destino inicial, ainda haveria uma segunda etapa a ser percorrida, com a difícil missão de termos que enfrentar outro meio de transporte público e em plena hora do “rush” paulistano. 
 
Contudo, desistimos desse sacrifício para prosseguir na continuidade imediata da longa jornada para podermos atingir bairros da zona leste da cidade, nosso destino final, onde respectivamente morávamos e assim resolvemos adentrar na Biblioteca Municipal Mário de Andrade, onde sempre haviam concertos eruditos e gratuitos nessa dita “Happy Hour”, portanto, foi uma ótima opção para ganharmos tempo agradavelmente enquanto esperávamos o trânsito acalmar-se ao ponto do transporte público mostrar-se menos lotado.

Sentamos na galeria superior do seu belo e aconchegante auditório existente naquela biblioteca pública e aos três sinais clássicos do teatro, eis que adentraram ao palco, um pianista e um cantor lírico, com a programação sendo composta por árias de óperas e algumas canções da MPB bem antiga, eu diria, pré-Velha Guarda, portanto a conter canções provenientes de autores do século XIX, inclusive.
Assim que o espetáculo iniciou-se, constatamos que o cantor era bastante afetado em seu gestual. Ele apresentava sim, os maneirismos típicos da parte de cantores líricos tradicionais, como na sua postura próxima ao piano, mãos colocadas à frente e a agarrar-se mutuamente como a simular um encaixe em forma de elo com os dedos entrelaçados e um dos pés virados de forma perpendicular, além do olhar vidrado para o infinito a não encarar a plateia, principalmente aos que assistiam na parte inferior do auditório, abaixo do nível do palco. 
 
Até o término da primeira parte do sarau, com Árias de Óperas, foi tudo comedido sob o ponto de vista cênico, bem ao estilo desse padrão de apresentação tradicional, no entanto, quando começou a sua sessão com canções populares antigas, esse cantor não conseguiu conter a Carmem Miranda que habitava o seu íntimo, digamos assim, e passou a adotar uma postura histriônica e bastante efeminada, mas ao mesmo tempo, a denotar uma aura muito obsoleta na forma de expressar-se, muito diferente da ousadia avant-garde de um artista com coragem e determinação, como Ney Matogrosso, por exemplo.
Portanto, esse choque totalmente antagônico entre estéticas dispares entre si, foi demais para o meu colega de poltrona, que não suportou e entrou em um surto de gargalhadas incontrolável, e claro, a sua atitude contagiou muitas pessoas à nossa volta. Mais do que isso, tal reação obviamente chegou ao palco e incomodou os artistas, é claro. 
 
Um clima constrangedor instaurou-se, pois o artista ao sentir-se menosprezado com tal manifestação, adotou a postura, talvez por descontrole emocional motivado pela raiva, de exagerar ainda mais na sua performance e isso arruinou completamente a sua apresentação, não resta dúvida.
 
Pessoas da plateia, instaladas na parte inferior protestaram contra os que alojavam-se no mezanino, pois notadamente deviam ser parentes e amigos do cantor ultrajado e eles tiveram razão para reclamar, não posso deixar de considerar isso. Mas apesar dos pesares, o artista conduziu o seu espetáculo até o final, o que também deve ser enaltecido.
Sobre esse rapaz, que contagiou a todos com sua atitude debochada, que na verdade eu mal conhecia, houve uma característica sua que reputo ter sido vital para recriminar tal atitude de sua parte: ele era músico e tocava/estudava um típico instrumento sinfônico, portanto uma agravante, ao considerar-se que seu métier era o da música erudita em princípio, e sendo assim, a sua reação de debochar acintosamente do artista, como algo reprovável, mesmo ao levar-se em conta que este realmente passara do ponto em sua performance. 
 
Em suma, esse rapaz jamais deveria ter adotado tal postura deselegante contra um colega em cena. Foi o tal negócio: se entrou no recinto e não gostou da performance do artista no palco, deveria ter retirado-se, mas ao ficar ali com a intenção deliberada de desdenhar, realmente não fora uma postura adequada para ninguém, principalmente para um músico, colega de profissão do artista ali em cima do palco, e ainda mais, por ser em tese do mesmo nicho musical, supostamente, o da música erudita, onde o recato da parte do público, é fundamental para a performance do artista e ele deveria saber bem dessa prerrogativa como um fator sine qua non.

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