quinta-feira, 24 de maio de 2018

Crônicas da Autobiografia - Solo de Guitarra Imaginário a Miar - Por Luiz Domingues

Aconteceu um pouco antes da história do Boca do Céu iniciar-se, cerca de fevereiro ou março de 1976

Em 1975, eu havia formado uma banda no colégio em que frequentava, com a cumplicidade de amigos que compactuavam dos ideais, no entanto, tratou-se na verdade de uma banda fictícia, pois ninguém ali sabia tocar um instrumento sequer e só havia o ingênuo comprometimento de cada componente de estudar "futuramente". 
 
Portanto, nessa circunstância, como válvula de escape para dar vazão à energia infantojuvenil em plena erupção, inebriada pela vontade de usufruir da glória do Rock, restara-nos a força da imaginação tão somente.
Em torno disso, as atividades de tal banda fictícia limitavam-se a elucubrações sobre eventuais capas de discos que faríamos no “futuro” e como única ação mais concreta, houveram reuniões de composição, no entanto, sob a singela e deveras absurda prática da elaboração de melodias entoadas e composição de letras para tais supostas músicas, que foi o único dispositivo que tivemos como algo palpável naquele instante. 
 
Claro que com o fim das atividades escolares desse ano, a banda esvaiu-se, com a maioria dos componentes preocupados com as suas respectivas atividades nas férias e somente eu, na prática, estive obcecado pela ideia de vir a ser um Rocker verdadeiramente e sob uma segunda instância, um ou outro membro sob uma graduação menor em tal intento em meio a essa tentativa inicial feita em 1975, mas certamente com a devida ressalva de estar em um grau de entusiasmo bem menor do que o meu.

Dessa forma, eu e Edson Coronato, que mostrou-se disposto a levar adiante o “projeto”, criamos no início de 1976, uma nova banda, ao mudarmos o nome inicial criado em 1975, “Satanaz”, para “Medusa”, e assim deixarmos o campo a inspiração demoníaca a la Black Sabbath, para utilizarmos a mitologia grega, via Genesis, talvez, sob uma avaliação bem romântica de minha parte, ao narrar este caso nos dias atuais. 
 
Então, por volta de fevereiro e a estender até meados de março, nós marcamos reuniões periódicas na residência do amigo, Edson Coronato, que morava no bairro do Brooklin, na zona sul de São Paulo e praticamente só nós dois trabalhamos na formatação dessa nova banda, a elaborarmos um material nos mesmos moldes da banda anterior, isto é, a se tratar de uma série de canções compostas apenas por linhas melódicas entoadas, sem a presença de nenhum instrumento musical verdadeiro, portanto, foram composições geradas com total ausência de uma estrutura harmônica, simples que fosse, tampouco nenhum critério rítmico, ao apresentar tão somente melodias criadas sem sentido musical formal, algum. 
 
E no que esteve ao nosso alcance, que seriam as letras, a nossa poesia era tão pobre e descabida, quanto a parte musical, que na verdade era anti-musical pela falta de recursos técnicos e teóricos da parte de ambos.
Assim, sem noção, mas com uma imensa vontade para adentrar esse mundo da música e do Rock em específico pela sua magnitude contracultural inerente e mesmo ao não possuir aptidão alguma para tal, ao criarmos as nossas músicas absurdas, os métodos de criação foram igualmente estapafúrdios. 
 
Como por exemplo, o fato de nós termos tido a preocupação de estabelecermos arranjos para as canções, mesmo sem possuirmos nenhuma noção mínima sobre teoria musical e nem sequer sabermos o básico da digitação de um instrumento verdadeiro, qualquer que fosse. 
 
Nesses termos, ao criarmos “mapas” aleatórios das músicas, estabelecemos convenções, linhas de baixo & bateria e solos de guitarra e teclados, baseados inteiramente na nossa experiência como meros ouvintes dos discos de bandas de Rock europeias que apreciávamos, mas sem instrução musical alguma, apenas a empreendermos uma mera repetição dos modelos alheios e aleatórios, em detrimento do nosso inexistente conhecimento musical. 
 
Portanto, tudo o que propúnhamos mutuamente, era mostrado ao colega, pela via oral, isto é, imitávamos vocalmente os sons característicos de cada instrumento de uma forma bizarra, como se fosse uma absurda sonoplastia. 
 
Isso fazia com que os solos de guitarra e eventualmente os de sintetizadores Mini Moog que adorávamos, ao escutarmos os discos das maiores bandas setentistas que idolatrávamos, soassem aos ouvidos alheios, como um festival grotesco de grunhidos, os mais inusitados.
Até que um dia, uma pessoa da família do Edson irritou-se, pois nós devíamos estar mesmo a perturbar a família (e a vizinhança) com as nossas imitações onomatopaicas de solos de guitarra e teclados, que vinham de guitarras Fender e Gibson ou do teclado Mini Moog em nossa imaginação e vontade de chegar nesse ponto, verdadeiramente, mas para qualquer outra pessoa alheia a tais sonhos quixotescos, soavam sob uma forma grotesca, ou seja, fariam qualquer pessoa adulta e normal, preocupar-se com o que estaríamos a ingerir como um possível fator alucinógeno, pois não pareceu atitude de gente mentalmente sã, se é que o leitor me entende.

E nessa intervenção do familiar do Edson, a vergonha gerada teve o impacto da tomada de consciência, pois ali a banda imaginária que alimentávamos, acabou sumariamente, ao caracterizar a gota d’água, quando eu ouvi um grito que veio de longe, em nossa direção:
 
-“Parem com esses miados de gatos que estão a imitar, por favor, parecem loucos ao fazer isso”...
A parente do Edson teve razão, foi o que estávamos a executar na prática e tal situação obrigou-me a deixar a postura quixotesca de lado e de fato, buscar um caminho real se eu realmente quisesse entrar para a atuação da música profissional. 
 
Cerca de um mês depois disso, eu aceitei o convite de um outro colega da escola (Osvaldo Vicino), a formar “uma banda de verdade”, e ele tinha uma guitarra real, sabia o be-a-bá dos acordes maiores e menores e já arriscava-se em solos. 
 
Quanto ao Edson, este também fez parte do começo dessa banda real (que após várias mudanças de denominação, estabeleceu-se como: “Boca do Céu”), a denotar que também quis levar a sério, embora logo a seguir tenha desistido e tomado um outro rumo na sua vida. 
 
E da minha parte, dali em diante, foi uma longa jornada até considerar-me um músico, concretamente, mas creio ter valido a pena empreender tal esforço e ter feito a transição entre a postura quixotesca de simular sons de instrumentos musicais, mais a parecer o miado de gatos, a aprender a tocar verdadeiramente um instrumento.

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