sábado, 26 de outubro de 2019

Crônicas da Autobiografia - A Antevisão do Erro - Por Luiz Domingues


                       Aconteceu sempre, em toda a carreira

Tirante os músicos eruditos que tocam a lerem partituras ou que decoram mentalmente peças com tamanho gigantesco e extremamente complexas (e que além disso, contam com a orientação de um maestro dotado de um conhecimento absurdo, ao ter em sua mente decoradas as respectivas partituras de todos os instrumentos de uma orquestra sinfônica), o fato é que há um sentimento comum para todo músico, que é o de saber exatamente quando está a chegar uma parte de uma música em que ele pressente que há uma dificuldade para executá-la e também sobre as pendências que os seus companheiros detém, na mesma canção, ou em outras.
Claro, nada que não seja sanado com tranquilidade em sessões de ensaios, mediante uma conversa franca com os colegas de trabalho, na base da solidariedade e mesmo que não haja um sentimento de amizade entre os componentes de uma banda, a boa execução de uma música ao vivo, é um objetivo em comum, portanto, se qualquer componente errar, é uma mácula para a banda inteira, daí haver o sentimento comum de que ninguém falhe, para não comprometer o resultado geral do grupo. É o óbvio ululante.
 
O fato, é que o músico sabe das suas próprias dúvidas e aonde precisa esclarecer algum detalhe em que esteja a falhar, sob o ponto de vista harmônico, melódico ou rítmico. No entanto, há um sentimento que é recorrente em relação ao erro, que acredito, seja comum para muitos, senão todos os músicos, que é justamente a identificação do erro (ou dificuldade premente que se detenha para saná-la), e à medida em que a música avança, o músico fica a aguardar, como se fosse uma contagem regressiva, a demarcar o momento fatídico em que ele sabe que possivelmente errará, ou terá uma grande dificuldade para executar tal trecho difícil a contento, e isso vale para todo companheiro que o músico sabe estar na mesma situação.
A explicar melhor: o efeito psicológico extremamente negativo em torno dessa angústia progressiva, classifiquemos dessa forma, ajuda decisivamente a aumentar a possibilidade do erro de fato, vir a se concretizar.

Portanto, trata-se de um sentimento que produz amargura e ansiedade. É um horror tocar com esse tipo de expectativa prévia, pois tira completamente o foco e sobretudo a espontaneidade do músico. Isso é muito potencializado se o músico toca com um grupo que produz um tipo de música muito complexa, que trabalha com estruturas sofisticadas em termos rítmicos, ou seja, um tipo de música a conter convenções intrincadas, onde os instrumentistas precisam estar rigorosamente juntos na execução, sob o sério risco de arruinar-se a performance, se um ou mais músicos, errarem tais marcações. 
 
É claro, músicos de alto gabarito, raramente erram e se isso ocorre, são ágeis para consertarem e disfarçarem, e assim seguirem em frente a minimizar o efeito de seus erros. Muitas vezes, músicos sorriem entre si quando alguém erra, como um sinal de um comprometimento solidário e as pessoas leigas, tendem a nem perceberem os erros. 
É comum no camarim de um pós-show, os músicos comentarem sobre os erros e se o clima for amistoso dentro da banda, tais falhas são tratadas com bom humor, até. 
 
E nesses termos, quando pessoas leigas em música abordam os músicos para cumprimentá-los, é bem casual que estas rasguem elogios, ao sinalizarem que não captaram os erros. Dentro dessa dicotomia, o fato é que a visão mais crítica do músico, tende a analisar a sua própria performance de uma forma deveras negativa, ao mostrar-se mais minucioso em sua autoavaliação.
 
O mesmo caso ocorre em estúdio, aliás, com muito maior rigidez, pois os músicos sabem, nota por nota, onde erraram e assim querem regravar para corrigir. No entanto, é ao vivo que o sentimento da antevisão dos eventuais erros, mais torna-se proeminente. Aquele sentimento interno que é disparado, exatamente a apontar o momento preciso onde fatalmente erraremos por conta de alguma dúvida não ajustada previamente, atormenta-nos.
 
E o mesmo acontece em relação aos companheiros. É horrível igualmente que você saiba exatamente onde o companheiro tenderá a falhar e para não comprometer a banda, que você seja impelido a errar propositalmente, para fazer parecer que o suposto erro alheio passe como um arranjo proposital da música a desafiar as leis da teoria musical e assim minimizar o desastre em prol do bem comum de sua banda.
Qual é o antídoto para não passar por tal tipo de situação em um show ao vivo? Sobretudo: ensaio com afinco, conversa franca entre os componentes da banda e a garantia de um ambiente interno solidário entre os membros do grupo. E nada mais.

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