sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Dívida & Honra - Por Luiz Domingues

Em um mundo construído pelo paradigma dos valores, no qual tudo é monetizado, incluso as questões que na prática seriam meramente subjetivas, tais como as aferições sobre a ação do tempo e o valor do esforço empreendido para se cumprir qualquer tarefa, é normal que de pai para filho, geração para geração, fique impregnada como uma norma viver sob tal parâmetro.

Quando isso começou? Provavelmente dentro das cavernas com os primeiros homens primitivos começaram a organizar a sua precária noção de sociedade. Quando vai mudar essa forma de agir e pensar? É imprevisível, mas talvez um dia a humanidade avance e consiga se organizar sem tal mentalidade tão dependente dessa graduação de valores e monetização total que torna a vida, um massacre opressor.

No entanto, alheio à discussão sociológica em torno dessa problemática milenar, o fato é que a vida de uma pessoa comum como Ruiz Rodriguez (um rapaz latinoamericano e hispânico, nascido em um país pobre da América Central), foi pautada por tal mentalidade sobre valores e honradez no sentido de se enaltecer o trabalho duro para poder ganhar dinheiro e assim saldar todas as suas dívidas, ou seja, a se valer do sentimento de que se esforçou muito para pagar as suas contas e dormir aliviado toda noite, com a sensação de que não deve nada a ninguém. É óbvio que não há nada de errado em trabalhar com afinco e também honrar compromissos, não é essa a questão.

Ruiz foi criado pelos pais e avós com esse sentimento fortemente arraigado e assim, foi o típico rapaz honesto que não suportava a ideia de dever um centavo sequer. Ele ficava transtornado quando fazia uma pequena compra no mercado do bairro e na hora do troco, a moça da caixa alegava que não tinha moedas de pequeno valor para lhe devolver e "perdoava" a diferença na conta, ao relevar a moedinha de pequeno valor que faltava. Inconformado, ele voltava para a casa e vasculhava as gavetas até achar a moeda que faltara e voltava ao mercado para fazer questão de fechar a conta inteiramente.

Um dia, no entanto, ele resolveu comprar uma bebida em uma pequena adega que havia sido recém-inaugurada no seu bairro e o fenômeno se repetiu no momento da proprietária do estabelecimento preparar o seu troco. Sem moedas de pequeno valor no caixa, a senhora simplesmente sorriu para ele e disse que estava certa a conta, porém, Ruiz notou que na matemática, ficou a faltar míseros dois centavos para fechar tal aritmética. 

Transtornado com a possibilidade de ter a sua honradez maculada logo no primeiro contato com essa comerciante, ele foi correndo para a sua casa, como se essa fosse uma questão primordial a ser resolvida. E então, após vasculhar as gavetas de sua casa, se desesperou ao não achar as duas moedas de um centavo que precisava desesperadamente e passou a amaldiçoar a situação, com xingamentos e gestos bruscos, pois realmente não suportava a ideia de ter sua imagem de honestidade manchada na vizinhança.

Ao não encontrar as moedas, ele passou a procurar em lugares não usuais, até que ao procurar nos bolsos de uma calça que havia sido lavada e estava pendurada no varal de roupas a tomar sol no quintal da sua humilde habitação, eis que o milagre se operou e ele achou não as duas, mas três moedas de um centavo da sua moeda pátria, o que lhe deu uma sensação de alívio enorme naquele momento tão prosaico.

Com as duas moedas em mãos, como se tais artefatos fossem troféus a serem exibidos com orgulho, eis que ele se dirigiu de imediato ao estabelecimento em que ficara a dever tal módica quantia e ao chegar ali sem fôlego de tanto que correra, simplesmente abriu a mão e a gaguejar pela falta de ar e também motivado pelo sentimento de emoção, entregou o valor que faltara à proprietária.

No entanto, a senhora teve uma reação da qual ele jamais poderia imaginar, pois ao contrário do sentimento de honra que ele tinha e que alimentava a sua postura cotidiana, a idosa franziu o semblante e lhe respondeu com certa rispidez que aquele valor mínimo a ofendia, pois ela já deixara claro que havia considerado a conta encerrada.

Nesse dia, ante tal postura que ele simplesmente não conhecia, Ruiz teve um outro ponto de vista, a ponderar sobre a questão da honradez baseada em torno de valores monetários. 

Por conta dessas linhas antagônicas que pautam a questão dos valores que são impostos à vida humana, chegara um momento bom em sua trajetória pessoal para ponderar: o que é realmente honrado na atribuição de valores para tudo?

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