sábado, 16 de julho de 2022

Civilização x Barbárie - Por Luiz Domingues

Em um país dominado por um regime fechado, autoritário e bastante hostil às questões culturais, um grupo de amigos se organizou para promover pequenos saraus literários, onde liam-se os textos e poesias que escreviam.

No entanto, ao viverem tempos difíceis, eles tinham medo da opressão do regime que odiava manifestações culturais e dessa forma, eles tomavam toda a precaução para tornar as suas reuniões seguras. E por conta dessa predisposição para se manter um padrão de segurança, eis que um deles sugeriu que os saraus ocorressem na sua casa e havia uma questão inusitada para que tal agendamento ocorresse.

Nesse contexto, por ironia do destino, esse rapaz que oferecera a sua residência para servir como base das reuniões promovidas pelos entusiastas da literatura, era filho de um funcionário de alto escalão desse governo horroroso, frontalmente contra a cultura. No entanto, segundo ele enfatizava sempre aos seus amigos, o seu pai não compactuava com os atos pautados pela barbárie que esse governo protagonizava e tal contraste chamava a atenção de todos, positivamente nesse caso, é claro.

E ao ir além, esse pai era um entusiasta das artes, igualmente, portanto, se posicionava como um verdadeiro antagonista da linha de ação do próprio governo pelo qual ele trabalhava. 

Essa estranha posição tomada por esse pai, ao mesmo tempo que causava admiração dos rapazes e orgulho para o seu filho, gerava dúvidas. Certa vez, um dos rapazes criou coragem e perguntou diretamente para esse senhor, por qual motivo uma pessoa que era intelectualizada, amava as artes e se mostrava a favor da evolução do padrão civilizatório, trabalhava para um governo que cultivava métodos acintosamente bárbaros, no sentido oposto?

Nesse instante, todos ficaram constrangidos e houve até quem temesse pelo pior, com o senhor a se mostrar ofendido e por conta disso, a demonstrar alguma reação violenta. 

Porém, o senhor não se alterou nem um milímetro em seu comportamento padrão e educadamente respondeu que “não concordava com certos exageros que esse governo perpetrava, mas achava que o endurecimento do regime era necessário, pois o povo não estava preparado para viver sob um regime livre e que mediante tal estratégia de ordem educativa, após um tempo de maturação, esse dia sem opressão e com fomento à cultura chegaria para a nação”.

Foi uma boa resposta diplomática, mas na verdade, ninguém ali se satisfez com tal desculpa que lhes pareceu esfarrapada. Mas tudo bem, apesar dos pesares, esse pai “liberal” estava sendo gentil ao extremo ao oferecer a sua residência para os rapazes realizarem os seus Saraus em segurança, inclusive ao se arriscar perante os seus pares no governo e mais do que isso, esse senhor gostava verdadeiramente de participar, pois apesar da sua contradição pessoal completa ao trabalhar para um governo cruel e despótico, ele de fato amava as artes e assim, tinha prazer de participar de tais reuniões como um ouvinte entusiasmado.

Em uma outra ocasião, quando os rapazes chegaram para mais uma noitada do sarau, eis que foram surpreendidos com a presença de um pequeno grupo de pessoas estranhas ali presentes. Vestidos com trajes de gala, eram cantores que faziam parte de um coral com cunho religioso. 

O dono da casa, esse pai acolhedor de um dos rapazes do Sarau estava muito eufórico com essa presença musical que ele considerava esfuziante e fez questão de apresentar o grupo de cantores aos rapazes. E a seguir, os vocalistas se puseram em ação ao cantar uma peça ufanista e bem piegas, típica do cancioneiro que embalava aquele regime, bem naquela predisposição de que “a cultura doravante vai ser assim ou não será nada”, como preconizara um certo publicitário que servira a um regime asqueroso do passado e certamente inspirador para essa gente.

Naturalmente que os rapazes se entreolharam, mas nada disseram, para não ferir os sentimentos do amigo e principalmente do pai dele, que a despeito de suas contradições inexplicáveis, se mostrava extremamente generoso para com eles.

Contudo, gestos assim reforçavam a questão da dubiedade, pois eles pensavam o óbvio em uníssono: como seria possível ser um entusiasta das artes e trabalhar conjuntamente e admirar aquele governo formado por trogloditas empenhados em promover o retrocesso?

Todavia, a mais grotesca situação estava por acontecer! Eis que em uma outra noite marcada para ser promovido o sarau, os rapazes chegaram à residência e ao passarem pela sala de estar, se espantaram ao deparar com as figuras de dois ministros de estado e um parlamentar, a conversarem com o pai de seu amigo.

Estes verdadeiros carrascos da civilização, olharam estupefatos para os rapazes, com aquele olhar de desconfiança de quem certamente os considerara como possíveis opositores do regime. E os rapazes por sua vez, sinalizaram com cumprimentos discretos e se evadiram rapidamente a alegar que iriam estudar em grupo, para disfarçar e certamente a cancelar o sarau naquela noite.   

Bem, se havia dúvida entre os rapazes sobre quem era o pai bondoso de seu amigo a julgar pelo convívio com eles nos saraus, em confronto como ele agia enquanto agente governamental, depois desse evento, eles decididamente ficaram ainda mais confusos.

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