sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Sofie e a Cabala - Por Marcelino Rodriguez


A cabala diz que a luz divina sempre está no mesmo 

lugar, nos esperando, nós é que não sabemos como 

alcançá-la. 


Nos últimos tempos, as únicas luzes que me tem 

chegado são da memória, como Sofie, minha magra 

namorada francesa, que poderia se desfazer com um 

vento mais forte e cantava alouete para mim.


Estamos no Quinta da Boa Vista, eu deitado em seu 

colo.


O vento balança as árvores e os pássaros cantam para 

nós dois e para a vida. 


Era estranho como uma menina de pernas tão magras

poderia ser uma coisa tão 

especial. 

 


Dou risada quando penso nas meninas de 

hoje. Na verdade, não é bem uma risada. É outra coisa 

do universo romântico. Um jeito que não é todo mundo 

que entende.


O ano é 1996. 


Sofie é dona de umas três lojas de artigos femininos na 

Zona Sul. 


Eu sou uma promessa literária, na agonia entre a fama 

e o anonimato. Ele tem 26 anos. Eu farei trinta. 



A gente se beija e o Rio de Janeiro entra no grande 

roteiro romântico do universo. Eu lambo os lábios dela, 

ela sorri; rimos e brincamos com o bolo de fubá. Ela me 

chama de Marcelo, como minha mãe. Com seu 

sotaque,parece mais que um carinho, o êxtase 

supremo.


Um dia ela me pede em casamento.



-- Vamos casar, Marcelooo?

-- Você sabe que ,entre eu e você, tem a mamãe. Não 

posso deixar minha mãe sozinha.

-- Vamos levá-la. Na França, você tem mais chance. 


Aqui você pode se tornar um gênio incompreendido.


-- Por que você não fica?



Ela apenas sorri, melancolicamente.



Os dias estão se aproximando e nos amamos como se 

fosse sempre uma despedida. 


Eu lambia-lhes os pés e aquilo era minha glória. Que 

me importava o Camões, se eu tinha Sofie?


Ela era o sagrado e a sagração; nesse tempo, nasciam 

flores onde eu pisava e tudo que eu bebia, dava inveja 

aos deuses. Sofie acreditava que eu seria um mito das 

letras. 


Às vezes, todavia, ela se queixava quase em francês.


-- Eu só tenho Você aqui , Marcelooo.


Um dia, o inevitável, no aeroporto Internacional.


-- Por que você tem mesmo de ir embora?

-- Não sei viver com gente sem cultura. Se você não 

casa comigo, prefiro voltar para Marselha.
 
Foi assim que Sofie me deixou sozinho no país. E sem suas pernas magras de ninfa, para que eu pudesse continuar.


Marcelino Rodriguez é colunista sazonal do Blog Luiz Domingues 2. Escritor de vasta e consagrada obra, aqui nos mostra uma crônica com clima de roteiro de filme da nouvelle vague.

4 comentários:

  1. Nouvelle vague...sim, bem JEAN-LUC GODARD! "Foi assim que Sofie me deixou sozinho no país. E sem suas pernas magras de ninfa, para que eu pudesse continuar."... sensacional!

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    1. Puxa, que bacana saber que pensamos igual, Ana !

      Também curti muito a crônica do Marcelino, um escritor inspirado.

      Grato pela participação !

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