-- Depois que você sofrer bastante, esse povo dos jornais contrata você. A gente que vive de escrita, tem que estar atento a ingratidão.
Você sabe, garoto, só de olhar na cara de um homem, sei se ele é ou não um patife, ou se leu Graciliano Ramos ou não, o que vai dar no mesmo.
-- Gosto muito quando você fala das moças, Braga.

-- Sim, suas crônicas sobre as mulheres são muito delicadas, como rosas que se vão abrindo aos poucos, de botão em botão.
-- Você quer que eu te fale de uma moça milagrosa e linda, mesmo depois da morte?
-- Sim.
-- Já ouviu falar da camponesa Elizabeth Soubirois?
-- Não, mas pelo nome é francesa né?
-- Sim, Francesa.
Braga nunca desperdiçava uma palavra; um mestre de exatidão delicada.
-- Que tem ela?
-- Foi ela quem viu Nossa Senhora em Lourdes, que ela chamava de "Senhora".
-- Sim, mestre, mas o que tem ela a ver com os escritores.
-- Você sabia que ela morreu e seu corpo continua intacto, desafiando a ciência humana? O corpo dela, pois, continua incorruptível. Está lá para quem quiser ver, exposto. Um milagre, vivo e morto. O ápice da poesia.
-- Nossa, não sabia dessa história. É verdade, mesmo?
-- Sim, verdade.
Braga foi na estante e pegou um volume da enciclopédia, que já trouxe aberta.
-- Veja, jovem.
Havia ,de fato, a foto do cadáver sereno da santa de Lourdes.
-- Sabe o que estou querendo mostrar-lhe, meu futuro imortal?
-- Não.
-- Nossa vida de escrever é como a da santa francesa. Damos frutos em vida e depois de mortos, e ainda tem gente disposta a duvidar que milagres e milagreiros existem aqui e no mundo absoluto, que está lá além da janela. Se continuarmos vivos depois de mortos, sinal que cumprimos nosso destino.
Olhei para aquele homem, e pensei que ele era habitado por toda uma mitologia grega de deuses.
O sol ia caindo no mar, ao sabor de nossa conversa.
-- Aceita, por que o escritor que não bebe também é um patife - disse, estendendo-me um copo de uísque com duas pedras de gelo.
-- Obrigado.
Bebíamos em silêncio, até que depois de um tempo, cerca de meia hora, pedi-lhe para dar uma última olhada da janela, antes de ir embora. O sol entrara completamente no mar. Braga já estava mais silencioso, reticente. Levou-me até porta.
-- Me liga, quando quiser. Boa sorte com os poemas. Pense: tem que valer para a eternidade.
-- Até breve, mestre.
Lá fora, já era escuridão.
Vi, pela última vez, o sol de Ipanema.
Marcelino Rodriguez é colunista esporádico do Blog Luiz Domingues 2. Escritor de vasta e consagrada obra, aqui nos traz uma deliciosa crônica, evocando o caráter imortal do legado literário ao mundo tão carente de cultura, e por que não (?), vergonha na cara...
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