Chegamos à danceteria para o soundcheck, no horário combinado.
Não lembro-me com exatidão se três ou quatro da tarde. O equipamento era peso pesado, um P.A. adequado para shows em estádios de futebol. O galpão era imenso, e segundo os produtores que receberam-nos, a expectativa era para a chegada de quatro mil pessoas, para aquela noite. O técnico de som foi um sujeito conhecido no meio, apelidado como : "Castor". Gentil, deixou-nos a vontade e equalizou um ótimo monitor de palco, ao qual não estávamos acostumados, diga-se de passagem.
Em conversa informal, contou-nos que operara a Patrulha do Espaço em ocasiões passadas, a quebrar o clima, e assim ganhar a nossa confiança. Depois da passagem do som, desistimos de voltar para a casa e ficamos alojados no próprio local. A espera seria enorme e entediante, mas voltar mais tarde seria arriscado, com um possível tumulto generalizado na porta, e dificuldade para estacionar os carros. A casa abriu no início da noite, e pôs-se a lotar sob uma velocidade incrível. A maioria das pessoas que ali compareceu, foi oriunda da juventude burguesa, mas viu-se ali e aqui, figuras destoantes, representantes de típicas tribos oitentistas. Entre tais tribos, predominaram os "New Wavers". Esses ao menos eram pacíficos, e sua postura social era amena, apenas por vestir-se com aquela estética e apreciar o seu som, sem incomodar ninguém, a despeito de outras tribos oitentistas, extremamente agressivas.
Um pouco antes do nosso show iniciar-se, duas pessoas da produção da casa convidou-nos a "turbinar o ânimo", debaixo do palco, sob a estrutura metálica de sustentação. Só o Zé Luiz aceitou o gentil convite, e esse ato de sua parte, causar-nos-ia uma dificuldade técnica durante o show. Começou enfim a nossa apresentação e a pressão do som foi muito forte. Víamos que o público reagia bem, a aplaudir e dançar, mas se fôssemos mais uma banda famosa do mainstream, estariam a delirar, tenho certeza. Não desagradamos a plateia, e pelo contrário, fomos aplaudidos, mas não houve um entusiasmo muito exaltado, digamos assim. Todavia, esperávamos até um clima meio hostil e no máximo, uma educada frieza, portanto, saímos do palco contentes com os aplausos educados daquele público nada a ver conosco, ou vice-versa como queira o leitor. O problema do Zé Luiz ter aceito o convite gentil que mencionei, foi que o andamento das músicas foram à Marte, Plutão e Vênus...
Músicas normalmente rápidas e que exigiam atenção na execução de convenções mais técnicas, ficaram dificílimas para ser executadas, além da dificuldade visível do Rubens para cantar, nessa circunstância super acelerada. Claro, o público em sua maioria não percebeu esse desconforto e mesmo assim, driblamos a dificuldade e tocamos tudo, a errar muito pouco, mesmo com esse "beat" absurdo.
E convenhamos, o Zé Luiz era (é) um demônio ao instrumento, e mesmo sob velocidade estonteante, fez suas viradas mirabolantes, a rir, como se aquilo fosse fácil, e de certa forma, o fora mesmo... para ele ! Claro, tirante a canção, "Luz", que por ser Rock'n Roll, passava fácil por plateias não acostumadas ao nosso som, e os covers com Rocks cinquentistas que executamos, nas outras músicas o ânimo do público abaixou um pouco, o que fora compreensível.
A Chave do Sol em julho de 1984, e essa sessão de fotos foi realizada na semana do show do Radar Tantã
Acabou o show, e no camarim recebemos pessoas. Para a nossa surpresa, havia sim fãs d'A Chave do Sol presentes no recinto, e fomos visitados por alguns deles. Nessa noite, lembro-me que um de nossos amigos que auxiliou-nos como roadies, foi o Wagner "Sabbath", eterno postulante a vocalista da banda.
Como era um rapaz alto e muito forte, pedi que ele acompanhasse-me até a sala da diretoria da casa, onde o gerente faria o pagamento do cachet. Essa sala, ficava no lado oposto e para acessá-la, não havia outro caminho a não ser passar pelo meio do público. Por temer voltar com maços de dinheiro nos bolsos, sozinho em meio a uma multidão formada por cerca de quatro mil pessoas (aliás, o borderô oficial acusou : quatro mil e quinhentas naquela noite !), pedi ao Wagner "Sabbath" que fosse comigo, como "segurança", nessa missão temerosa. Atravessamos a multidão e fomos bem recebidos pelo gerente, apesar do clima tenso, com seguranças mal encarados, mas fora compreensível com o volume de dinheiro que estavam a contar do movimento da bilheteria.
O sujeito solicitou então para eu contar o valor. Eu pedi ao Wagner que auxiliasse-me, e ao dividir em dois montes iguais na percepção visual, comecei a contar o meu maço de notas, junto com ele. Comecei a estranhar, contudo, quando eu estava quase a chegar à quantia de dois milhões de cruzeiros, e ainda havia muito dinheiro a ser contado. Teoricamente, se havia dividido o maço com as notas de dinheiro, eu deveria ter encerrado na casa dos dois milhões, mais ou menos, com o Wagner a ter que chegar nesse mesmo valor, com o seu monte.
Mas eu continuei a contar e para a minha surpresa, cheguei à casa dos quatro milhões de cruzeiros, enquanto o Wagner ainda finalizava o seu montante. Quando ele terminou e disse-me que estava certo, quatro milhões de cruzeiros, também, eu entendi finalmente a questão. O gerente da casa perguntou-me se estava correta a quantia de ... oito milhões de cruzeiros ! Cáspite ! A moça que intermediara a negociação, havia dito-nos que havia vendido o nosso show por quatro milhões, quando na verdade foi por oito milhões !
Seu azar foi ter ficado doente no dia e o seu "contato" também ter ausentado-se nesse esquema, pois o gerente não sabia de nada, e pagou-nos regiamente pelo cachet justo e combinado...
Então, disse-lhe que sim, que estava correto, e assinei o recibo. Despedimo-nos cordialmente, quando eu e o Wagner voltamos ao camarim, com receio, mas no meio daquela euforia perpetrada pelo som mecânico muito alto e iluminação, e ao levar-se em conta que dos quatro mil e quinhentos seres ali presentes, 99% estavam muito loucos; bêbados ou ansiosos para arrumar parceiros sexuais, e assim, ninguém notou que estávamos com os bolsos das calças com volumes indisfarçáveis a acumular notas de dinheiro. E posteriormente, tentei ser o mais discreto possível para transmitir a notícia ao Rubens e Zé Luiz, pois o camarim ainda tinha a presença de estranhos etc.
Na residência do Rubens, em clima de euforia, guardamos o nosso equipamento e instrumentos, e fizemos chuva de dinheiro, como se tivéssemos ganhado na loteria. Foi hilário...
A encerrar, na segunda-feira, depositamos os 20% combinados da comissão da moça, sobre os quatro milhões que dissera-nos ser o cachet total, e nem um centavo a mais. Naturalmente que ela foi buscar a parte robusta que omitira e levou um tremendo susto no caixa do banco. Bem, nunca mais ela abordou-nos para propor nenhum outro show. Claro que ela tinha outros contatos, poderia vender outros etc. Contudo, persistir em um tipo de relação dessas com alguém mal intencionado, teria sido muito desagradável, certamente.
Existe no mundo artístico, inúmeras histórias desagradáveis sobre empresários exploradores. Mas esse engodo que pretendia aplicar-nos, extrapolara qualquer parâmetro. Para nós, portanto, que estávamos radiantes por receber um cachet muito acima dos nossos padrões, constatar que fora na verdade o dobro disso, foi uma surpresa enorme e esse dinheiro, serviu para investirmos em produção e divulgação dos shows que faríamos no Teatro Lira Paulistana, doravante, além de render uma divisão pessoal substancial, para cada um de nós. Eu por exemplo, investi em figurino, a melhorar o meu guarda-roupa cênico, o que é nítido pelas fotos e vídeos dessa época em diante. Para encerrar essa história, tudo isso ocorreu no dia 14 de julho de 1984, na danceteria "Radar Tantã", sob a visão de quatro mil e quinhentas pessoas, que tocamos e voltamos para a casa com os nossos bolsos, literalmente cheios. E para a tal moça, como foi a data de aniversário da queda da Bastilha, só posso dizer que a guilhotina ceifou-lhe uma pequena fortuna, que ela achou que ganharia fácil em nossas costas...
Continua...
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