sábado, 23 de novembro de 2013

A Falta - Por Marcelino Rodriguez

Tive uma sensação estranha essa manhã, ao acordar; tive um feeling, se me permitem usar essa palavra inglesa para definir o sentimento que me tomou. 

A sensação de que estava me faltando alguém. Ora, sou solteiro a muitos anos, desde que nasci. E minhas namoradas nunca permaneceram mais que quatro dias na minha cama. De modo que acordar sozinho é o meu cotidiano. A alma já era para estar mais que acostumada.
Essa manhã, porém, foi diferente. Não houve nem conformismo nem consolo pela clara falta que havia, acrescentada da sensação de vazio mais impotência. 

E veio a melancolia da banda que faltava. Eu poderia até chorar um pouco de saudade pela falta real de alguém que eu sentia, claramente. Descobri, perplexo, que eu sou eu mais alguém que falta. Isso é tão comovedoramente romântico quanto trágico.
 

Quem é ela? Quem é a outra que não acordou comigo hoje? A outra que é minha ?  
Existe alguém no meu coração, na minha vida, na minha alma. Mas não dormimos, infelizmente (minha boca enche de água e deve haver uma atmosfera soturna ao meu redor quando lembro disso, uma espécie de sombra pela falta desse pequeno e fatal detalhe amoroso).
 

Seria dela a estranha saudade de hoje? Uma saudade única e comprometedora? De quem dei por falta hoje, ao acordar? De um anjo que não me velou? Um amor de outra vida ?
Não era apenas um sentimento de solidão. Era como se alguma parte de mim, outra pessoa (não alguma compensação psicológica) estivesse me faltando e me enfraquecendo, como se faltasse-me um membro com a falta dela. Era como um absurdo eu estar acordando só.
 

Esse acontecimento soa-me sobre a vida deveras revelador, tanto como sou mais que penso como de perplexidade de saber que outra vida, que não sei por onde vai, vai levando a minha junto. Só resta saber porque deixa-me, a tantos e tantos anos, acordar impiedosamente só. E por que só hoje dei-me conta dessa saudade infinita ?  
Talvez desde o Éden essa parte de mim esteja apartada. Mas só hoje, verdadeiramente, dei-me conta da sua real e tangível existência.
 

Pode ser que aquela que hoje me toma o coração tenha alguma participação nesse mistério, pois fora dela não há nem o sonho de outra Eva, nem a esperança de outro paraíso.
Alguns que se pensam realistas dirão que tive um surto e tentarão até explicar o fato perceptivo com alguma definição psiquiátrica. Outros me acusarão de sonhador, rótulo nem sempre cabível a mim, xerife da selva. Terceiro nem saberão do acontecido, por falta de cultura ou interesse.
 

Mas a realidade que já torna-se prolixa de tão certa é que dei por falta do meu amor, um amor que é mistério e certeza, ainda que temporariamente apartado de mim pelo ilusório tempo e o não menos ilusório espaço, um amor que me faz reconhecer a minha incompletude e faz saber que hora haverá em que as misteriosas leis do universo trazer-lo-á de volta a mim, árvore e fruto dessa fatalidade divina.
Essa crônica foi extraída do livro "A Ilha".



Marcelino Rodriguez é colunista esporádico do Blog Luiz Domingues 2. Escritor de vasta e consagrada obra, aqui faz uma reflexão sobre o tema da "solidão".


4 comentários:

  1. Maravilhoso! Comovente!
    Conviver com nossa incompletude, esse é o grande desafio.

    Giu Furlan

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  2. O escritor Marcelino Rodriguez é um craque nessa arte de colocar no papel, sentimentos que temos dificuldade de expressar, normalmente.

    O Blog agradece sua visita, leitura, e comentário elogioso ao nosso colunista, Giulianella !

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  3. Acredito que todo ser humano, um dia se sentiu assim. Muitas vezes estamos cercados de inúmeras pessoas e nos sentindo só. A maioria das pessoas que conheço e que vivem sozinhos, acabam se acostumando. Muitos preferem viver assim até o final de suas vidas. Eu, sinceramente, fiz a opção de estar só, porque a vida separou de mim, a pessoa que eu havia procurado e sonhado em todo o percurso da procura da companhia ideal. E se separou, então não era real.
    Acredito também, que todos que lerem esse texto maravilhoso e profundo do escritor Marcelino, acaba de certa forma se identificando.
    Parabéns escritor Marcelino. Você expressa com tanta simplicidade um assunto tão complicado. rs

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    1. Verdade, Bete !

      Pode ser encarada como uma opção, a vontade de estar só, mas convenhamos, são poucas as pessoas que fazem tal escolha, considerada "exótica" pela maioria que tem como paradigma, a formação de casais como meta de felicidade e estabilidade emocional e social.

      Muito feliz por sua participação, agradeço sua leitura, manifestação e elogios à crônica do colunista Marcelino Rodriguez, em nome do Blog !

      Acompanhe sempre a coluna dele, que é orgulho deste Blog !

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