sábado, 16 de janeiro de 2016

Autobiografia na Música - Pedra - Capítulo 140 - Por Luiz Domingues

O próximo compromisso a ser cumprido, foi sui generis sob uma primeira leitura. Fruto de um contato oferecido pelo nosso amigo, Marcelo "Pepe" Bueno, baixista do Tomada, nós fizemos contato com uma casa localizada em uma cidade do interior de São Paulo e ali agendamos apresentação para o final de maio de 2009. 

Vivíamos tempos de resolução em termos de não mais tocarmos em casas noturnas com ambientação para baladas de jovens burgueses desinteressados em arte e/ou casas que ainda que fossem sob orientação Rocker, não oferecessem infra estrutura mínima para o show ser realizado tecnicamente a contento.

Contudo, segundo relatos do Marcelo Bueno, mas também reforçados por outros músicos que haviam apresentado-se nela, tal casa era diferenciada, pois mantinha uma aura de um mini centro cultural e o seu proprietário era um colecionador de discos e Rocker contumaz, que fazia de sua casa, um recanto para apreciadores muito antenados, pois disponibilizava o seu acervo pessoal para degustação pública, mediante uma sala de audição super aconchegante, ao estilo europeu e tal dependência era um anexo da casa de shows. Tal casa chamava-se: "Acervo do Tuzzi".

Claro que empolgamo-nos com essas notícias e dessa forma, tocar em um ambiente assim seria no mínimo um prazer para nós, independente de haver um bom resultado artístico e financeiro que justificasse a nossa ida à simpática cidade interiorana de Bragança Paulista-SP, cerca de cem Km de São Paulo, quase na divisa com Minas Gerais. 

Tudo pareceu ser agradável e estimulante para nós nessa produção, ao fugir do padrão de uma casa noturna tradicional em que o Pedra não sentia-se à vontade em apresentar-se, por vários motivos que eu já expus anteriormente e tampouco seria um salão rústico para Rockers beberrões, no qual também não sentíamos adequação para a nossa proposta artística. 

Mas houve um senão. Ao falaramos com o proprietário, ele foi sincero e disse-nos que não havia nenhum equipamento na casa, portanto, além do backline, teríamos que providenciarmos um PA e também não havia um sistema de iluminação de show, isto é, teríamos que também levarmos um equipamento desse porte ou contentarmo-nos em tocarmos com a luz de serviço, como banda "lounge" de restaurante.

Estava bom demais para ser verdade ser um Centro Cultural para Rockers, mas nós ponderamos e naquele espírito de mutirão e boa vontade, o Xando prontificou-se a levar o PA de seu estúdio de ensaio e dessa forma, nós fechamos com o rapaz. 

Uma banda de abertura foi sugerida pelo dono da casa, naquela predisposição de que os seus componentes ajudariam a reforçar o público e sabedores que não éramos famosos no mainstream ao ponto de chegarmos em uma cidade interiorana e a causar comoção, nós aceitamos, por prudência. 

No dia do show, parecido com o que ocorrera-me em junho de 2006, quando eu perdi uma prima querida no dia de um espetáculo a ser cumprido pelo Pedra, o Xando desta feita recebeu a notícia do falecimento de um tio seu. 

Situação um pouco diferente da que acontecera-me, no entanto, pois mesmo sabedor que o seu ente querido estava há dias na UTI de um hospital e em estado terminal, a notícia oficial de seu passamento foi-lhe comunicada já a caminho da estrada, dentro da van e quando alguém perguntou-lhe se ele desejava cancelar o show e comparecer ao funeral, ele disse-me que já havia despedido-se de seu tio no hospital e que não ficaria com a consciência pesada em não prestigiar o rito do velório/sepultamento. 

Foi mais uma atitude corajosa, a denotar o seu sacrifício pessoal, visto que dias antes ele, Xando, fora protagonista de um grande susto no Centro Cultural São Paulo e também ali ele se colocara de uma forma destemida ao firmar compromisso de continuar com o show, em detrimento de sua situação pessoal desconfortável, fato narrado anteriormente. 

Bem, seguimos em frente rumo à estrada Fernão Dias, que liga São Paulo a Belo Horizonte. A van que contratáramos fora indicação do Rodrigo e ao contrário do "seu" Valdir, que levara-nos para algumas viagens interioranas anteriores, desta feita ele não esteve disponível e indicou-nos um colega seu.

Van novinha em folha, tudo sob controle, mas quando o motorista desceu para falar conosco, o seu porte físico se mostrara tão avantajado, que foi inevitável não cumprimentá-lo a brincar com o fato e as piadas começaram a girar em torno dele ser segurança da banda doravante ou "é melhor não contrariá-lo de forma alguma" e bobagens do gênero. 

A nossa sorte foi que o rapaz era extremamente genti e brincalhão também, portanto, a empatia foi instantânea e ele entrou no espírito das brincadeiras sem problemas, riu e também falou várias bobagens desse estilo. 

Mas a brincadeira tinha fundo de verdade, por que apesar de ser motorista, ele também trabalhava como segurança em casas noturnas da zona leste de São Paulo e logo nos avisou que brincadeiras a parte, se precisássemos, nesse ou em qualquer outro show, ele estaria à nossa disposição para contemporizar qualquer "tempo ruim" que ocorresse para nós. Piadista também, mas com aquele porte ao estilo "Arnold Schwarzenegger", certamente que viajamos seguros ao extremo.

Quando chegamos ao local, que era um pouco afastado do perímetro urbano da cidade, nós verificamos que a entrada para a van se mostrara um pouco estreita. Com cuidado e paciência, o rapaz manobrou a van em um melhor lugar possível para descarregar-se o equipamento, no entanto, uma pequena diferença de metragem  impediu a abertura total da porta e assim a prejudicar o trabalho dos roadies para descarregar. 

Manobrar naquele espaço apertado seria um estorvo e aí ele mostrou a sua força física ao levantar a van na mão, como em demonstrações de fisiculturismo e arrancou aplausos dos funcionários da casa e foi hilária tal cena inusitada! 

Montamos todo o equipamento e foi muito trabalhoso, pois a infraestrutura não era das melhores e vários improvisos precisaram serem feitos para ligar tudo e não sobrecarregar a fonte energética da casa.

O lado bom, foi que exatamente como haviam descrito para nós, o "Acervo do Tuzzi" era um recanto cultural ultra aconchegante e a sala de audição famosa, fazia jus aos comentários, pois mantinha à disposição, milhares de CD's e vinis, tudo do mais alto bom gosto, a predominar o gênero do Rock Progressivo setentista em profusão.

Não seria possível sentarmos naquelas poltronas ao estilo vitorianas e degustar um chá britânico para ouvirmos alguma banda adorável de mediante o seu gigantesco acervo de discos, por que o tempo urgia, mas constatamos o quão agradável era o espaço do Sidney, o nosso hospitaleiro anfitrião.

Já começava a anoitecer quando demo-nos por satisfeitos com o auto-soundcheck. Se havíamos logrado êxito ao fazermos uma loucura semelhante, um ano antes no Teatro X em São Paulo, não preocupar-nos repetir a dose em um ambiente nitidamente menor, embora com características diferentes, pois não se mostrava como totalmente fechado, mas a conter aberturas laterais, ao estilo de um grande quiosque. 

Ao contrário da maioria de bandas de abertura que eu já tivera na minha vida profissional antes, a banda que apresentar-se-ia antes de nós, era absolutamente estranha. Até hoje eu não entendi a proposta artística daqueles garotos. Ao olhar e ouvir ali na hora, a grosso modo parecia estarem dentro de uma vertente "indie", mas ao escutar mais detidamente, apesar da sonoridade acre e permeada de experimentalismos nada Pop, cheguei a pensar que talvez tivessem influência de bandas da vertente Krautrock setentista e convenhamos, não seria nada difícil uma banda com tal proposta insólita para o mundo de 2009, tocar isso, ao se considerar que o "Acervo do Tuzzi" foi antes de mais nada, um espaço para a degustação de Rock e frequentado costumeiramente por colecionadores de discos e conhecedores da matéria.

Portanto, por incrível que pareça, especificamente ali, não seria de admirar-se que uma banda fosse influenciada por Krautrock setentista. Como poderíamos saber se aqueles garotos não eram fãs de "Guru-Guru", "Can", "Neu", "Amon Düül II", "Popol Vuh", "Tangerine Dream" e tantos outros exemplos de bandas dessa vertente?

Só não aprovamos a postura dos garotos, que chegaram com instrumentos na mão e sem muita cerimônia foram a aconchegarem-se no palco e a usarem o nosso backline e bateria, sem pedir licença etc. e tal. Bem, passou sete anos do ocorrido em relação a quando escrevo este trecho (2016), por isso, espero que tenham aprendido que não funciona desse jeito e que conversar com os donos do equipamento previamente, é uma conduta profissional a ser observada. 

Tal banda chamava-se: "Verticais Hussman", que talvez denuncie o que queriam fazer artisticamente, visto que tal nome denota refrigeradores e frezeers de origem germânica. 

Há uma linha tênue entre o experimentalismo e a criatividade. Quem arrisca-se nessa seara difícil, tem que ter muita consciência disso. Os rapazes deram o seu recado pleno de estranheza blasé e chegou a nossa vez. 

Um pouco antes deles terminarem, o proprietário disse-nos que a casa estava muito mais cheia que as suas melhores noites costumeiras e que estava surpreendido por isso. De fato, havia um congestionamento na pequena estrada vicinal que trazia pessoas da cidade para esse lugar semi-rural.

Enfim, que bom se fosse pelo esforço da banda de abertura, mas receio que não tenha sido, pelo som que praticavam e pela atitude de não trazerem consigo nenhum amplificador que fosse para apresentarem-se, a denotar que muito provavelmente nada haviam feito para ajudar na divulgação. 

Começamos a tocar e todas as mesas estavam preenchidas. Não foi exatamente um público Rocker formado por entendidos do assunto e colecionadores de discos, público padrão da casa, mas haviam várias famílias com crianças até, como se fosse um restaurante. Muito estranho, será que estavam ali por acaso?

Um grupo de amigos do dono e que estavam ali desde o período da tarde durante a realização do soundcheck, foi extremamente simpático comigo e pela conversa que tivéramos nesse período vespertino, eram conhecedores da história do Rock e mostraram-se muito interessados em conhecer o nosso trabalho. 

Ao ouvirem rapidamente algumas faixas dos nossos dois discos lançados, haviam gostado das sonoridades e feito observações precisas sobre as influências que captaram através da nossa música, a denotar terem grande conhecimento, mesmo.

Foi muito curioso, mas no decorrer do nosso show, já na segunda música, eles demonstraram no semblante que não estavam a gostar, e assim, rapidamente se levantaram e foram aproveitar o resto da noite na discoteca da casa. 

Eu nunca entendi tal postura, visto que o som estava bom, a nossa performance, idem, e no período da tarde, eles haviam gostado do som e disseram-se ansiosos por ouvir-nos ao vivo. O que teria acontecido para contrariarem-se dessa forma? 

Não que isso tenha subtraído o meu sono naquela noite, mas eu fiquei muito intrigado, pois estava acostumado a enfrentar plateias formadas por incautos e ser ignorado retumbantemente nessas circunstâncias, mas aqueles sujeitos teriam tudo para entender a proposta da nossa banda e ao abandonarem o show com aquela expressão facial a denotar a contrariedade explícita, foi algo surpreendente para a fomentar a minha estupefação. 

Fomos aplaudidos educadamente pelos demais e curiosamente, pessoas que não aparentavam serem "experts" na história do Rock, e que ficaram até o final, a aplaudirem e a sorrirem para nós. O mundo é surpreendente, mesmo. 

Ali, onde pensamos que o público diferenciado entender-nos-ia como raramente entendiam-nos em outras casas noturnas, a sinergia não aconteceu, simplesmente.

Para uma banda com dificuldades para achar eco em seus anseios artísticos, esse show poderia denotar um verdadeiro "balde d'água fria" em nosso combalido ânimo. 

Por sorte, apesar dos pesares, o fator financeiro correspondeu a contento, a minimizar o nosso infortúnio ali. Outro aspecto animador, foi a hospitalidade extrema do seu proprietário, Sidney. O lado bom foi que fez um frio de rachar no fim de outono, e acentuado naquela região ligeiramente serrana e a ótima pizza que nos foi servida posteriormente, tratou de aquecer-nos.

Tal experiência de não se estabelecer uma conexão a contento com o público, pareceu perseguir-nos, claro que tal fator haveria de ser um verdadeiro vírus a atormentar-nos e não medíamos, mas corríamos o risco dessa predisposição tornar-se uma metástase.

Infelizmente, não tenho fotos, vídeos, tampouco material de portfólio desse show. Dia 30 de maio de 2009, sábado. Acervo do Tuzzi, Bragança Paulista-SP, com cento e vinte pessoas na plateia e 3 "entendidos" de Rock a não apreciar nosso trabalho...

Continua...   

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