terça-feira, 18 de agosto de 2015

Autobiografia na Música - A Chave/The Key - Capítulo 27 - Por Luiz Domingues

Um dos vários motivos pelos quais eu aboli o apelido: "Tigueis" em 1999, foi sem dúvida a questão dos muitos aborrecimentos que tive com tal grafia a ser constantemente publicada de forma errônea. Louvo a boa vontade do funcionário do Teatro Mambembe em datilografar a filipeta acima, mas a sua falta de cuidado na digitação foi grande. "Tiguels" até que soou bonito, por assemelhar-se a um sobrenome estrangeiro, mas faça-me o favor! E no caso do Zé Luiz, a família Rapolli deve ter se chateado por ser chamada como: "Ramolle", que inclusive sugere um estilo de massa italiana, talvez... 

Uma nova investida feita no Teatro Mambembe, no dia 10 de outubro de 1988, foi não somente a última vez dessa banda a pisar nesse palco, mas também, a minha derradeira, na carreira. O fato, é que o velho Teatro estava a ser pressionado a vender as suas instalações para a ampliação de um hospital/maternidade que era seu vizinho, o Santa Joana, famoso no bairro.
Foto mais atual da fachada do Hospital Santa Joana, na ladeira íngreme da Rua do Paraíso. O prédio envidraçado ao lado, foi onde funcionou o Teatro Mambembe nos anos oitenta, e que depois tornou-se um anexo desse complexo hospitalar

Ouvíamos há meses os boatos a dar conta de que o Hospital estava a reclamar do barulho e aglomeração noturna, muitas vezes a ultrapassar a marca de quinhentas pessoas, que na entrada e saída dos shows, naturalmente produziam barulho, com inevitáveis manifestações de euforia da parte de muitos, ainda com a adrenalina de um show de Rock, a lhes dar impulso.

Mas a pensar hoje em dia, creio que sim, devia ter havido um incômodo por se tratar de um hospital, mas no fundo, tal reclamação foi mesmo uma estratégia para pressionar os proprietários a ceder ao ímpeto do Hospital em buscar a sua ampliação e foi inevitável, com o Teatro a ser vendido e rapidamente para se transformar em um ambulatório anexo do seu complexo. A cidade de São Paulo perderia mais um palco democrático e honesto, tal como o saudoso, Lira Paulistana, e assim, artistas independentes e outsiders ficaram órfãos mais uma vez.

A falar, portanto, dessa última vez em que toquei nesse teatro, esta apresentação ocorreu no dia 1º de outubro de 1988, como eu já havia mencionado, e nessa noite, nós dividimos o palco com os amigos do Viper. Nessa altura, o Viper já não era aquela banda formada por garotinhos imberbes e havia amadurecido muito, não apenas pela idade cronológica de seus componentes, mas como banda, propriamente dita.

Cerca de quatrocentas pessoas compareceram ao show, e isso representara um pouco mais do que a capacidade total do Teatro, portanto, um ótimo público, porém, acostumados que estávamos a superlotar, com ocasiões até em que havíamos levado mais do dobro dessa lotação máxima, consideramos o público dessa noite, apenas razoável, ora veja só como os conceitos eram diferentes nessa época em relação ao panorama tétrico do ano de 2015, onde escrevo esse trecho, quando cinquenta pagantes presentes a um evento, são comemorados como um sinal de "triunfo"...

O nosso show foi cumprido dentro do padrão normal do que estávamos habituados a fazer na época, sem grandes novidades.

Uma equipe de reportagem do programa jornalístico SPTV/3ª Edição, da Rede Globo, filmou alguns trechos dos shows das duas bandas e colocou tal material no ar, no dia seguinte. Infelizmente, não tenho tal material disponível.

Cerca de quinze dias depois, tivemos mais uma oportunidade de nos apresentarmos em São Paulo. E para promover tal espetáculo, fomos no dia 25 de novembro de 1988, novamente ao programa de TV,  TV Mix, da TV Gazeta, para uma rápida inserção só para falar do espetáculo. Estávamos escalados para tocar no "Dama Xoc", uma casa de médio porte que abrira em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo.

Se por um lado perdíamos o Teatro Mambembe, havia o Dama Xoc e o seu concorrente no mesmo bairro, o Aeroanta, como casas de espetáculos de médio porte a suprir a necessidade de bandas desse patamar, sem chances para tocar em casas mais sofisticadas como o Olympia e o Palace, acostumadas a promover shows internacionais, mas ao mesmo tempo, sem nos relegar ao limbo das pequenas casas sem estrutura adequada.

Contudo, ao contrário dos Teatros Lira Paulistana e Mambembe, para se tocar no Dama Xoc e no Aeroanta, não era tão fácil assim. Havia uma burocracia e uma velada barreira que só poucos tinham acesso, portanto, quando surgiu a oportunidade, claro que comemoramos. Não seria no entanto, um show exclusivo nosso. Teríamos que dividir o palco e a noite com duas outras bandas, "Vodu" e "Viper". 

Sobre o Viper, os seus componentes eram velhos amigos e não haveria nenhum problema, e sobre o Vodu, apesar de nós não termos a mesma amizade mais solidificada nessa época, eu conhecia o seu baixista, André "Pomba" Cagni, e este era um rapaz extremamente inteligente e muito imbuído para envolver-se em produções em geral, ou seja, demonstrava ter espírito empreendedor.
André "Pomba" Cagni, baixista do Vodu, em foto mais atual, onde também atua na militância política e em questões de cidadania, além dos agitos culturais 


Tanto que logo a seguir, ainda em 1988, André já estava a articular mil possibilidades nos bastidores da música pesada underground e praticamente já poder-se-ia dizer que paralelo à sua carreira artística como músico, ele era um produtor e empreendedor, pois abrira um espaço que se transformou em um mini Centro Cultural, articulou a criação de uma revista que durou por muitos anos nas bancas (Dynamite), passou a produzir shows e festas etc.

De nossa parte, queríamos usar esse show para algo a mais, talvez em uma das últimas tentativas para darmos um salto, mas sinceramente, por tudo o que eu já explanei nesta particular história dessa banda, só se fosse algo muito restrito ao mundo do Rock pesado underground e adepto desse específico nicho dos apreciadores de virtuosismo, a semente embrionária do tal do Heavy-Metal melódico que infestaria a década de noventa, nesse mundo pesado.

E nesse sentido, o Beto quis trazer um elemento diferente para incrementar o show que seria filmado, e assim, convidou e preparou uma aluna sua de canto para fazer Backing Vocals. Essa garota se chamava: Cristiane e fico a dever o seu sobrenome que realmente fugiu-me. Lembro-me do Beto a promover ensaios particulares com ela, ao ajudá-la e a corrigi-la em alguns aspectos, dias antes desse show.

O fato, é que nessa época, eu não fazia Backing Vocals a contento, apesar do Beto insistir muito para a minha participação, aliás desde o tempo d'A Chave do Sol. Eduardo Ardanuy não esboçava vontade de cantar e de fato, só queria ater-se à performance de sua guitarra. Fábio Ribeiro fazia alguma participação, mas era tímida e o nosso baterista, José Luiz Rapolli, apesar de ter um vozeirão grave, ao estilo de um "locutor de FM", não se arriscava. Portanto, com essa sua aluna, Beto queria ter um suporte, para não se esforçar tanto, a desgastar-se nos shows, além de possibilitar o enriquecimento do som da banda.

A Cristiane era uma moça dócil, e apesar de não ser uma garotinha, mas já uma mulher feita, com vinte e poucos anos, acredito, não tinha experiência de palco alguma, e mesmo ao sonhar com essa oportunidade, estava bastante receosa.

O seu nervosismo pela situação toda, foi compreensível. Seria o seu primeiro show, embora não a exibir-se exatamente na frente no palco, mas a se colocar em uma posição discreta, próxima ao praticável da bateria, portanto menos inibidora para alguém inexperiente. No show, ela não comprometeu, mas pelo vídeo, dá para notar que estava bem inibida.

Tenho cópia desse show, e está nos planos lançá-lo no YouTube, um dia. Foi um show sem grandes novidades, correto musicalmente e com performance boa da banda.
Foto da banda no camarim do Dama Xoc, minutos antes de entrar em cena. Note, leitor, que estamos com o visual de algumas fotos assinadas por Eric de Haas, que compuseram a capa do LP "A New Revolution", que só seria lançado dois anos depois. Acervo de Fábio Ribeiro

Aconteceu em 27 de novembro de 1988, no Dama Xoc e com presença de cerca de quatrocentas pessoas presentes no seu amplo ambiente rústico, com a proposta de todo mundo assistir os shows, em pé, sem um maior conforto.

Uma ocorrência mencionável, foi quando o Beto fez propaganda da camiseta que estávamos a lançar, com a capa do LP The Key como estampa e reputo ser esse um dos maiores erros cometidos por essa banda, pois definitivamente, não éramos a continuidade da velha,  "A Chave do Sol".

Por sorte (encarado como "azar" na época, é claro), tal acordo com um patrocinador não logrou êxito e o acordo se desfez a seguir, para confinar tais camisetas ao lote experimental composto por dez ou doze peças iniciais. Eu nem tenho uma camiseta dessas na minha memorabilia, infelizmente.

No vídeo, o Beto faz uma brincadeira com o nosso roadie na ocasião, Cesar Cardoso, que era meu aluno e indicação minha para trabalhar conosco, já que esse rapaz tinha uma certa experiência, por ser primo de um dos membros da banda: "Civil", com a qual trabalhou nessa mesma época mais ou menos. Ele, Cesar, aparece no vídeo a entrar no palco e exibir a estampa da camiseta em questão, vestida em seu corpo.
Micro resenha sobre o show no Dama Xoc, publicada na Revista Rock Brigade, em sua edição de nº 33

No dia 15 de dezembro de 1988, fomos no programa TV Mix, da TV Gazeta, para promover o último show do ano. E curiosamente, esse seria o último programa de TV, que essa banda participaria em sua carreira.

No dia seguinte, fizemos o último show do ano de 1988, no Black Jack Bar.  Cerca de trezentas e cinquenta pessoas compareceram, e apesar dessa super aglomeração para aquele diminuto espaço, eu tive um aborrecimento com a banda nesse dia.  

Sob uma somatória de insatisfações que vinham a crescer em volume, mas como eu já salientei anteriormente, nada teve a ver com as pessoas em si, mas com a situação toda que me angustiava, nesse dia, ao sair completamente de meu padrão de tolerância zen budista e monástica, habitual, irritei-me com uma questão prática do show em si.

Como era sabido e já salientado aqui neste relato, o Black Jack Bar era uma casa dotada de dimensões diminutas e possuía um equipamento de P.A.compatível com tal tamanho de instalações arquitetônicas, porém inadequado para suprir as necessidades de uma banda de Rock, ainda mais para a nossa formação de quinteto, com a presença de teclados, além da guitarra, baixo e bateria.

Portanto, não era possível tocar alto naquele minúsculo palco, sob o risco de tornar o som, uma maçaroca incompreensível, a anular qualquer possibilidade de se ouvir o vocalista, com um mínimo de inteligibilidade. Nessa noite em específico, desde o soundcheck, a banda pareceu não estar disposta a cumprir uma ferrenha dinâmica para tornar o espetáculo audível aos fãs, e sob um patamar de volume absurdo, começamos a tocar. 


Após três ou quatro apelos que eu fiz para que abaixassem os seus respectivos amplificadores, sem nenhum esboço de que pretendiam ceder nesse quesito, eis que eu tomei uma decisão radical, ao abaixar o meu amplificador ao patamar zero...

Inacreditável, mas eu não toquei quase por toda duração do show na verdade, apenas a digitar no instrumento mudo e mesmo assim, nenhum dos meus quatro colegas, notou a ausência do baixo, e nem mesmo, ninguém que estava na audiência!

O volume mostrara-se tão absurdo da parte dos demais, que a ausência de um instrumento como o baixo, que naturalmente se sobrepõe pelo seu peso, amparado pelas frequências graves, passou-lhes batido completamente.

Lógico que eu fiquei chateado com eles por não atenderem os meus pedidos para se fazer uma dinâmica estratégica que nos adaptasse às condições sonoras inadequadas da casa. Mas também fiquei chateado por ter tomado tal atitude, que foi desrespeitosa aos fãs que pagaram ingressos para assistir o espetáculo. Ponderei isso na hora, é claro. Mas o meu impulso de fazê-lo, também se baseou na constatação de que para o bem dos próprios fãs, um instrumento a menos, poderia contribuir para lhes dar um show melhor, pelo aspecto do áudio.

Além do mais, o fato de eu ter tocado a digitar, verdadeiramente, mas sem som no amplificador, despistou qualquer possibilidade de alguém achar a minha postura desrespeitosa. Se tivesse cruzado os braços, ou simplesmente abandonado o palco, aí sim, seria uma afronta ao público e à própria banda, e claro que jamais o faria.

Por fim, ao analisar pelo aspecto emocional, certamente que esse meu protesto velado representou a minha insatisfação com esse trabalho, e mais uma vez reitero, não foi nada contra as pessoas em si, embora nesse dia eu tenha me irritado com a teimosia de todos em tocar muito alto, mas principalmente por que eu estava a sobrar ali, com aquela sonoridade/estética que não apreciava, definitivamente.

Assim encerrou-se 1988, um ano que foi muito difícil para a minha carreira, pelos acontecimentos terríveis que acometeram-me no final de 1987, a obrigar-me a tomar um rumo que eu jamais quis ter tomado, mas a lutar muito para não deixar piorar ainda mais a situação. Hoje em dia eu penso que nada disso deveria ter acontecido, por um aspecto: o mal-entendido que precipitou o fim d'A Chave do Sol poderia ter sido contornado mediante uma conversa franca, travada alguns dias depois daquela tensa reunião onde o impasse levou à extinção da banda. Muito provavelmente a banda poderia ter continuado a sua trajetória sem prejuízos, inclusive com a volta de nosso baterista, José Luiz Dinola, que já havia desistido da ideia precipitada de abandonar a música. 

Todavia, o pior cenário possível manteve-se e sem saída, tivemos que montar uma banda às pressas, por conta da necessidade premente de vender discos. Ao ir além, estávamos desesperados e não houve uma outra alternativa.  
Foto promocional clicada na residência do fotógrafo/amigo Carlos Muniz Ventura, na Vila Pompeia, zona oeste de São Paulo, em 1988

Mas ao fim do ano, embora ainda houvesse uma elevada dívida a ser paga, ficou claro que essa banda não teria nada a ver com a velha, A Chave do Sol, portanto, as suas receitas geradas em específico não poderiam servir para pagar as dívidas de uma outra banda, a não ser pela disponibilização de minha parte, e do Beto Cruz, além da venda de cópias do LP The Key, naturalmente.

Então, pelo simples fato de ser na prática, um outra banda com outro trabalho distinto, e sem levar em consideração o fato da emergência causada pelo final abrupto da extinta, A Chave do Sol como principal agente motivador de sua criação, tal banda em meu entendimento, esteve pesada emocionalmente a falar, pelo fato de não estar a apresentar resultados artísticos e/ou financeiros interessantes, e pior, não me dar grandes perspectivas para médio ou longo prazo.

A resumir: tratou-se de um som que eu não apreciava, não estava a se justificar pelos seus parcos resultados financeiros e/ou artísticos, e não esboçava apresentar perspectivas de melhora para o futuro, em 1989, que já batia à porta. Diante desse panorama, eu tive poucas coisas a comemorar nesse ano de 1988, em relação à essa banda:

1) A sobrevivência heroica após uma hecatombe, e o mérito por essa sobrevida foi todo do Beto Cruz, que lutou como um leão para não deixar a chama apagar.

2) A boa vontade de uma parcela muito grande dos fãs da antiga, A Chave do Sol que mesmo sem compreender corretamente o que nos ocorrera, apoiou essa nova banda, e a estender tal observação a uma grande parcela dos jornalistas especializados.

3) O espírito de cooperação dos novos membros agregados: Edu, Fábio e José Luiz Rapolli, e incluo, Theo Godinho, mesmo que este último tenha tido uma participação meteórica nesse processo.

O ano de 1989, estava a chegar, e apenas dois fatos novos para esse ano novo, poderiam assegurar que essa banda permanecesse unida e com um certo comprometimento mútuo entre os seus componentes: um disco e uma perspectiva que ocorreria em breve, mas que ainda não fora conhecida ao final de 1988.


Continua...

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