quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Crônicas da autobiografia - Resquícios oitentistas - Por Luiz Domingues

               Aconteceu no tempo do Pitbulls on Crack em 1993

A nossa banda havia se apresentado em uma casa noturna localizada na cidade de Santo André-SP em maio de 1992, e conforme eu narrei no decorrer do texto autobiográfico contido no volume VIII da minha autobiografia, a descrever a minha história com esse grupo (também presente nos meus blogs 2 e 3), ali tivemos uma experiência de apreensão com um desfecho surpreendente.

Ocorre que uma região pertencente à área metropolitana de São Paulo, conhecida como "ABC", formada por sete cidades coladas umas nas outras e todas em São Paulo, teve um histórico forte de cumplicidade com o movimento Punk e com uma tribo rival, como os Skinheads e ambas, hostis a uma infinidade de outras tribos, entre elas aos ditos "headbangers", estes seguidores das estéticas do Heavy-Metal e nesse caso, eu não fazia parte de nenhuma delas e pelo contrário, era hostilizado por ser um 'hippie" anacrônico nos anos oitenta e sob perigo constante, pois os punks e skinheads odiavam velhos hippies dos anos sessenta ali perdidos no tempo e no espaço, cabeludos pacifistas como eu. 

Bem, nos anos oitenta, foram muitas as ocorrências desagradáveis vividas em meio às emboscadas que tais grupos promoviam pelas ruas de São Paulo, também pelas cidades do ABC e todos sabiam que as "gangs" mais violentas vinham do ABC, principalmente da cidade de Santo André.

Eis que em um dia de março de 1993, uma reunião foi marcada com um dirigente de uma pequena gravadora que havia se interessado em contratar a nossa banda para lançar um disco. O seu escritório ficava localizado em uma movimentada rua do centro de Santo André e curiosamente bem perto da casa noturna na qual havíamos passado por uma situação temerosa no ano anterior. 

Inocentemente, a julgar que o pior já havia passado com o avançar dos tempos, fui tranquilo ao local para representar a nossa banda, sem imaginar que nessa cidade ainda houvesse esse clima de animosidade, com "gangs" a estabelecer rondas veladas pelas ruas a fim de hostilizar grupos rivais.

Assim que estacionei o carro perto do local que procurava, vi que um grupo passava pela calçada, e fiquei preocupado, porque notei que esses sujeitos detinham correntes de ferro e bastões de beisebol em mãos. Pois é, eu estava errado, o fato da década de oitenta ter acabado não significou exatamente que essa mentalidade belicosa também estivesse extinta e assim, percebi que precisava tomar cuidado com o meu deslocamento dali ao escritório e de volta ao carro, quando do término da reunião.

Quando passaram pela calçada, os sujeitos não perceberam a minha presença dentro do carro e minha longa cabeleira hippie teria sido um alvo fácil para o seu ódio irracional inerente para lhes impelir a me hostilizar, e eu eu sabia como agiam esses sujeitos nos anos oitenta.

Esperei que se afastassem e quando desci do carro, verifiquei que havia estacionado pelo menos um metro dentro de um local proibido e isso geraria uma multa. Voltei ao carro para corrigir a posição do automóvel e ele simplesmente não deu sinal de ignição. Após algumas tentativas, desisti pois esgotaria a carga da bateria e talvez não fosse esse o problema, sendo que provavelmente poderia ter sido uma falha do motor de arranque (isso se confirmou horas depois).

Desci do carro e a empurrá-lo com as próprias mãos, coloquei o veículo em um local seguro e permitido, todavia me preocupei, pois a despeito do aborrecimento de ter que pedir socorro mecânico, havia o risco da hostilidade a me rondar. Dito e feito, eu pensava justamente nisso quando o grupo de pessoas hostis apontou na esquina, a voltar pela mesma calçada. Fui rápido, voltei para o carro para esperar que eles passassem de novo e ainda bem, novamente não notaram a minha presença ali dentro. 

Esperei que passassem de novo para poder sair com segurança com a intenção de ir ao escritório onde ocorreria a minha reunião, mas quando olhei para trás, vi que dois deles esboçaram se virar para trás para olhar e isso me deu a certeza que realmente estavam a fazer rondas, a caçar opositores de sua ideologia para arrumar confusão. Não dava para voltar ao carro sem ser notado e assim, refugiei-me em uma galeria que havia exatamente naquele ponto, cheia de lojas e ali aguardei por alguns minutos. De fato, dois desses mal-intencionados passaram, mas felizmente eles não tiveram a ideia de entrar na galeria e logo passaram de volta na direção oposta. Saí dali com cuidado, e ambos haviam sumido.

Fui à reunião, a proposta da pequena gravadora não era ruim, mas não fechamos negócio, pois o boato que ouvimos sobre uma proposta melhor logo se concretizou em termos de um contrato de gravação. 

E ali na rua, quando cheguei ao carro, a noite já se pronunciara e o comércio estava a fechar as portas, com o movimento da rua a diminuir bastante e assim, não havia mais vestígio dos gangsters briguentos.

Sofri um pouco para consertar o carro, pois o socorro mecânico demorou para aparecer, mas no final das contas, com um motor de arranque novo em folha, a ignição funcionou de imediato e eu parti, enfim, de volta a São Paulo. E uma certeza ficou: mesmo bem arrefecido, esse clima de hostilidade da parte de pessoas impregnadas desse tipo de baixo astral ainda existia e não era a hora para deixar de ser cauteloso.

domingo, 24 de novembro de 2024

Crônicas da autobiografia - Dr. Phibes trabalha na gráfica ao lado - Por Luiz Domingues

             Aconteceu no tempo da Patrulha do Espaço, em 2001

Por volta de julho de 2001, nós tínhamos marcado uma apresentação para ocorrer em uma famosa casa noturna localizada no bairro da Bela Vista, popularmente conhecido como "Bexiga", próximo ao centro de São Paulo. Como a rua 13 de maio, onde ficava instalada tal casa, apresentava tradicionalmente muita movimentação noturna (pelo fato de que havia muitos estabelecimentos similares no seu entorno), surgiu a ideia de usarmos um velho artifício de divulgação que já era bem obsoleto naquela época e ainda mais se aplicado em uma cidade gigantesca como São Paulo, haja vista que a sua visibilidade era circunscrita a uma campo minúsculo para repercutir a contento.

Todavia, amparados pelo sentimento de que valeria a pena pela movimentação forte que havia pelas calçadas dos dois lados da rua, resolvemos contratar o serviço de uma pequena gráfica de rua que também fazia serviços com placas pintadas a mão e faixas de pano das mesmas características.

Pois é, investimos dinheiro em uma arcaica faixa para ser pendurada entre dois postes, que era pintada com os seus dizeres a mão, demorava uma a duas horas para ficar pronta e no preço cobrado ficava a opção de mandar pendurar nos postes escolhidos ou deixar a incumbência ao cliente, mediante desconto.

A facilidade foi que a tal gráfica ficava localizada a poucos metros da casa na qual apresentar-nos-íamos e assim, em meio ao ritual do soundcheck vespertino, eu mesmo e o colega, Rodrigo Hid, fomos contratar o serviço para ser executado de imediato e cerca de duas horas depois a faixa em questão haveria de estar devidamente exibida para a visualização pública no início da noite. 

Quando estávamos para deixar as dependências da casa noturna rumo à pequena gráfica, um funcionário que ali trabalhava nos indagou se íamos de fato até esse estabelecimento e ao confirmarmos a nossa intenção, o rapaz falou em tom irônico: "ah, vão lá no Dr. Phibes". 

É claro que não entendemos a colocação de imediato, mas de pronto, eu que sou cinéfilo inveterado, lembrei-me do personagem que o rapaz evocou, ou seja, o famoso Dr. Anton Phibes, protagonista do filme: "The Abominable Dr. Phibes", uma produção britânica de 1971, a retratar a tétrica história de um organista erudito que sofre um acidente terrível de automóvel quando ia ver a sua esposa que estava hospitalizada, esta sob estado grave e depois do ocorrido que o impediu de chegar ao hospital, todo deformado e com danos às suas cordas vocais, descobre que a junta médica que assistiu a sua mulher, cometeu erro médico ao deixá-la falecer e ele jura se vingar de um por um dos médicos, ao arquitetar assassinatos de formas diferentes e todos sob um suplício terrível. Em suma, filme de terror gótico. Interpretado por Vincent Price, um ator genial para esse tipo de terror entre o clássico, o gótico e o caricatural, tudo misturado.

Bem, pensei que talvez o dono ou algum funcionário da gráfica fosse parecido com o ator norte-americano Vincent Price, que interpretou o papel do Dr. Phibes, contudo, fiquei intrigado, pois em pleno 2001 era improvável que esse rapaz soubesse dessa referência tão específica e no caso, distante do imaginário popular em voga.

Quando chegamos ao estabelecimento em questão, eis que o seu proprietário em pessoa (e faz-tudo do seu negócio, pois ele não tinha empregados para lhe auxiliar), veio nos atender e quando falou conosco, eu matei a charada, pois o senhor em questão usava uma cânula com válvula fonatória, ou seja, com as cordas vocais prejudicadas, ele se comunicava a usar tal aparelho de apoio e a voz dele que ouvíamos era completamente metalizada a se parecer com um robot de filme Sci-Fi dos anos cinquenta.

Foi difícil entender o que o senhor nos dizia e ele nos cravou de perguntas, pois também não entendera corretamente o que lhe pedíamos ("Patrulha do que?" "Espaço?" "É isso mesmo o que vocês querem?") e esse estranhamento mútuo dificultou a nossa comunicação de início. 

Bem, deu tudo certo, a faixa ficou pronta no horário combinado e os nossos roadies foram pendurá-la no poste. Não acho que tenha surtido um efeito promocional adequado para o nosso show, porém, devo registrar que o senhor em questão era um bom profissional, recomendado como uma referência do ramo no bairro.

Sobre o apelido, além do escárnio embutido que ele carregava da parte de quem o vociferava e atingia o pobre senhor idoso (pois ninguém perde a voz propositalmente porque deseja e muito menos usa uma válvula dessas por querer brincar de imitar o personagem do Dr. Phibes), eu fiquei intrigado, pois a não ser que o rapaz que nos falou sobre essa alcunha tivesse uma afinidade com um tipo de estilo cinematográfico tão específico e remoto, talvez ele apenas repetisse algo que não entendia exatamente, mas certamente alguém apelidou aquele senhor com a referência certeira que tinha na sua memória, a respeito do "abominável" Dr. Phibes.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Crônicas da autobiografia - Entrevistas equivocadas na imprensa escrita - Por Luiz Domingues

    Eu, Luiz Domingues, sob o click de Lincoln Baraccat em 2020

                            Aconteceu no decorrer da carreira inteira

No meio jornalístico, nem todo setorista de cultura é preparado para exercer bem atividade. Aliás, é bem típica a predisposição de qualquer redação de veículo grande de cobertura geral, a colocar estagiários recém formados ou ainda a cumprir o curso de jornalismo, em qualquer especialidade, sem levar em conta o desejo pessoal do novo funcionário e assim, muitos mudam constantemente de setor conforme se firmam nas empresas e assim, mais experientes, e com moral construída com seus chefes, se colocam aptos para buscar as especialidades com as quais se identificam melhor.

Em suma, muitas vezes o artista é abordado por um repórter que lhe entrevista e fica nítido que o entrevistador não tem a menor noção do que perguntar, ao denotar a completa falta de familiaridade com o assunto.

Mas isso não significa dizer que sob uma outra circunstância mais favorável, haja uma melhor sincronia. Muito repórter de veículo especializado pode conduzir a sua linha de raciocínio a fim de formular seu questionário, tendo como base a pura idiossincrasia de sua parte ou pior ainda, mediante manipulação deliberada, embora velada, para atender algum fator ideológico e pode ser ainda mais grave se na real intenção, haja um planejamento prévio no sentido de prejudicar você, a sua banda ou a escola estilística pela qual o seu trabalho pertence, simplesmente para favorecer antagonistas que podem ser do campo mercadológico a visar privilegiar forças advindas de outras vertentes e que atendem interesses opostos aos seus. 

E pode haver mais uma anomalia nesse tipo de relação, ou seja, por pura vaidade do mau jornalista em questão, as perguntas capciosas podem ocorrer e na mesma medida, as edições "marotas" também não são incomuns. Você conversara animadamente com o entrevistador, porém, quando a revista ou o jornal chegava às bancas, surpreendia-se com o conteúdo adulterado e certamente desfavorável à sua imagem ou simplesmente desdenhoso para com a sua obra.

Já no campo da imprensa alternativa, e a falar sobre um viés mais antigo, não baseado na realidade pós-internet, os fanzines eram geralmente publicações modestas, porém feitas com um grau de paixão enorme da parte de seus realizadores. Havia e ainda há colegas meus que desprezam tais veículos, por pura soberba descabida, a achar que as suas respectivas personalidades artísticas e consequentes obras, seriam muito maiores que esses humildes meios de comunicação e claro que eu jamais compactuei com tal afirmativa e toda vez que eu fui abordado por fanzineiros, e não importando qual era a tiragem que seus fanzines alcançavam e nem mesmo a sua aparência como acabamento gráfico, eu sempre atendi as solicitações de seus idealizadores com o mesmo respeito e atenção com a qual atendi jornalistas a serviço de órgão mainstream da imprensa.

Mas mesmo assim, ou seja, a se levar em conta que o fanzineiro é antes de tudo um apaixonado pelo Rock, pela música, pela arte & cultura, ou tudo isso junto, ainda assim, estamos sujeitos a ser abordados por pessoas com interesses secundários. Um exemplo que não é raro, é receber o convite para uma entrevista, ou matéria e mesmo uma resenha e no mesmo contato o fanzineiro lhe oferecer um pacote a ser pago, que lhe garantiria uma entrevista extensa com direito a foto na capa ou se recusada a ideia de se pagar, a sua participação de antemão ser anunciada sob um reduzida nota, como se fosse uma compra de anúncio classificado, a provar que a abominável prática do famigerado "jabá", tem formas alternativas de ser aplicado pelos oportunistas.  

De volta a falar sobre a imprensa maior, há também o caso das entrevistas deslocadas de contexto. Muitas revistas (isso a se pensar nas décadas anteriores), que não continham nenhuma familiaridade sequer com a cultura vista sob um prisma amplo, acharam em determinado ponto de suas existências que seria importante conter uma coluna sobre o assunto, assim, jogada a esmo, simplesmente para passar uma ideia de pluralidade. Acredito que se fosse através de uma espécie de revista centrada no campo do erotismo e sensualidade, como eram as revistas ditas para o "público masculino", eis que a tendência abriu campo para a disseminação e nesse sentido, surgiram colunas com tal abordagem em revistas similares. 

Para ser mais explícito, se a revista Playboy mantinha as entrevistas supostamente "sérias" nas suas páginas internas de coloração amarelada para destacar exatamente tal conteúdo em meio aos ensaios de fotos com moças nuas que era o seu verdadeiro chamariz, é claro que o paradigma foi criado.

Bem, nesse caso de revistas assim não conectadas com o campo cultural, jornalistas completamente despreparados chegavam com questionários sem nenhuma conexão com a sua realidade, tampouco da sua banda, nada a ver com o contexto do Rock e tudo mais. 

E não somente nas revistas de teor sensual, mas também em veículos destinados à economia, política, esportes e até revistas infames de fofocas sobre atores de novelas eu já tive a oportunidade de ser entrevistado e geralmente nesses casos tão díspares, eu já sabia que o teor da perguntas seria medíocre, de quem não sabe absolutamente nada sobre o universo do  qual eu e meus colegas pertenciam.

Na contramão, houve ocasiões nas quais me surpreendi. O veículo era adverso, mas o repórter veio preparado para uma entrevista bem embasada, mediante perguntas bastante pertinentes. Nesse caso, pela coincidência do repórter em questão (ou o seu editor), ser um aficionado, porém, foram exceções e certamente motivadas por um mero golpe de sorte.

E o supra-sumo da abordagem desdenhosa da parte de veículos maiores é convidar artista para uma entrevista e mesmo que você já tenha uma carreira consolidada com discos, tenha fãs e uma agenda constante de shows lotados pela audiência, mas não faça parte exatamente do patamar mainstream, a abordagem é construída de forma a não perguntar nada sobre o trabalho em si, mas com um questionário montado pelo mote do artista que não consegue sobreviver de sua arte. Com o enfoque nessa premissa, a ideia, se não é humilhar, chega bem perto disso no aspecto subliminar, ao formular perguntas que passam ao largo da obra que você forjou. Cheguei a participar de entrevistas com tal teor bem no começo da carreira, mas depois de um certo tempo, as evitei, exatamente por saber qual era a intenção e nesse caso, exerci o direito de não achar que a exposição ajudar-me-ia e pelo contrário, seria algo ultrajante.  

Para pontuar, digo que ao contrário, toda vez que fui entrevistado por um bom profissional convenientemente bem preparado, com cultura avantajada sobre o meio, foi um prazer enorme. Respeito mútuo e preparo jornalístico da parte de quem entrevista faz a diferença, ao criar empatia e por conseguinte, total fluidez nas respostas.  

sábado, 16 de novembro de 2024

Crônicas da autobiografia - O retrocesso medieval proposto - Por Luiz Domingues

O pré-Língua de Trapo em ação no ano de 1979. Click de Rivaldo Novaes

Aconteceu entre o tempo final do Boca do Céu, e início do Língua de Trapo, durante o ano de 1979

Em meio aos esforços para engrandecer a minha primeira banda, o Boca do Céu, a minha rotina do cotidiano durante o ano de 1979 se dividira entre as atividades da banda, a minha determinação pessoal para melhorar como músico e sim, cursar e passar pelo dito "terceiro ano colegial", que eu cumpria em termos de estudo formal.

Dentro do ambiente escolar, havia uma série de alunos que como eu, ainda estávamos ligados com os ideais contraculturais, e como Rockers com identificação hippie, mantínhamos uma aparência coadunada com os valores do Rock sessenta-setentista e assim, ainda que em fase de franca diminuição nessa ocasião, os usuários de longas cabeleiras estavam devidamente distribuídos pelas salas de aulas da escola.

                Eu (Luiz Domingues), em 1979. Acervo próprio

Nesse nesse específico ano, apesar de sempre ter tido uma postura "zen" e respeitosa no ambiente escolar, aliás, desde que ingressei no sistema educacional no ano de 1968, infelizmente eu tive um problema e de novo ressalto que na verdade, o problema não foi gerado por alguma ação minha, de forma alguma.

Explico: eis que um novo professor entrou em cena, a ministrar a discutível matéria de "OSPB" (organização social e política brasileira) para o ano letivo de 1979. Nos anos anteriores, nenhum professor houvera me hostilizado por eu manter aparência de "hippie", mas esse profissional em específico passou o ano inteiro a me hostilizar de uma forma gratuita e claro, estimulado por uma série de preconceitos que continha no seu âmago.

Não houve nenhuma surpresa de minha parte que esse sujeito a ministrar tal matéria, fosse um reacionário por natureza, como geralmente eram os entusiastas desse conteúdo com alta dose de doutrinação embutida em suas entranhas. No entanto, eu já havia enfrentado anteriormente professores da matéria semelhante, ou sejam, a indefectível "educação moral e cívica" durante a conclusão do ensino fundamental e não havia tido grandes problemas além do óbvio que essa matéria inseria em si, mas esse senhor se incomodou ao me ver no fundo a sala a usar uma longa cabeleira e não escondeu isso de ninguém, apesar de eu jamais ter me insubordinado à sua autoridade.

Com certa frequência, comentários sobre a "decadência social" promovida pelos "hippies cabeludos" vinham em voz alta, a mirar-me e completamente desconectados do contexto da matéria que nos passava, como um tipo de ataque covarde da parte desse pulha preconceituoso. Contudo, eu nunca retruquei a sua grosseria gratuita.

Certa vez ele citou o filósofo, Arthur Schopenhauer, ao pedir para que eu me levantasse e respondesse uma pergunta da matéria, mas a sua intenção foi apenas que eu ficasse de pé e em evidência para me atingir com um ataque frontal e gratuito ao citar o famoso aforismo cunhado por tal pensador: "cabelos longos, ideias curtas".

Ora, essa colocação misógina da parte do filósofo, foi abominável por natureza, embora esteja no contexto da época na qual viveu entre os séculos dezoito e dezenove e ao ir além, o preconceituoso incomodado com a minha aparência a distorceu, pois certamente interpretou a minha longa cabeleira como um sinal de homossexualidade, ou seja, o ataque foi duplo, no sentido de que primeiro: compactuava com a lógica abominável do filósofo que citou, ao considerar a mulher como um ser intelectualmente inferior ao homem e reforçou o preconceito ao julgar-me como um homem que desejava ser mulher, portanto, alguém que quisesse abdicar da minha "natural" superioridade no conceito dele, para se tornar inferior, isto é, a me chamar de desprovido de inteligência sob dois aspectos. Em suma, que raciocínio tacanho e carcomido de preconceitos dos mais abomináveis.

Certa vez, quando da administração da primeira prova formal bimestral, esse senhor já a se colocar como uma pessoa na terceira idade na ocasião, ao distribuir os papéis de prova aos alunos, fez uma explanação absolutamente lamentável e eu diria, criminosa, pois certamente que ele não tinha esse direito sob o ponto de vista pedagógico, quando disse aos berros: "eu não dou nota dez para ninguém, devo deixar claro. Mesmo que o aluno acerte todas as questões, mesmo que use de argumentação brilhante para defender a sua tese e esteja inteiramente correto no seu raciocínio, a nota dez eu só dou para Deus. Portanto, partindo dessa premissa, nenhum ser humano jamais poderá ter a mesma quantificação".

Bem, foi inacreditável ouvir essa afirmativa de um fanático religioso a usar do seu poder como professor para inventar um critério irracional para avaliar o desempenho dos seus alunos. E se o aluno dependesse da nota dez para fechar a média e passar de ano? Seria reprovado pelo beato? Inadmissível!.

Lá pela metade do ano, ele teve uma crise de nervosismo, quando fez um ataque às religiões orientais e ao citar o hinduísmo, centrou as suas baterias de ódio explícito ao criticar duramente as imagens de Deuses com a anatomia híbrida e/ou com a presença de muitos braços na representação visual de suas supostas imagens. E para demolir essas crenças, citou passagens da Bíblia a referendar a ideia de que o Deus único no qual acreditava criou a humanidade à sua semelhança e que era inconcebível haver gente ignorante que acreditava na multiplicidade de Deuses e sobretudo sobre as divindades que eram híbridas, a apresentar características humanas e animais em um mesmo corpo.

Aos berros, falava ser intolerável adorar um Deus com "cara de macaco ou elefante". Ora, o beócio nunca foi buscar entender as metáforas, alegorias e analogias de outras crenças e portanto, como um fanático monolítico que se revelara, jamais levou em consideração que nessa mitologia em específico, criaturas com vários braços tem como metáfora a ideia de que cada braço representa uma característica do referido Deus e no caso das feições animais, o raciocínio é o mesmo ao usar a analogia com os animais para realçar aspectos inerentes tais como força, destemor, argúcia, agilidade e outros, como algo meramente alegórico. E claro, a denotar que interpretava a Bíblia de uma forma literal e deveras infantil, sem entender as metáforas e simbologias ali descritas, e que à luz da razão, também são exóticas em muitas passagens, convenhamos.    

E para encerrar esta crônica, narro o ápice dessa atuação da parte desse professor e que ao mesmo tempo revelou a personalidade desse sujeito tão detestável pela sua verve autoritária e ignorante. Eis que ele propôs um estudo sobre o comportamento humano a se provar como algo altamente controverso.


Hipócrates, na antiguidade, formulou uma teoria a explicar a saúde do ser humano e que ao mesmo tempo tentava propor a mesma tese em relação ao seu comportamento, quando estabeleceu a questão sanguínea como tal parâmetro. Alguns séculos depois, o romano, Galeno, partiu desse estudo e avançou a estabelecer as bases do que veio a ser conhecido como "teoria humoral".

Esse texto serviu de base na Idade Média, séculos depois, para ser considerado como um parâmetro, como a teoria mais avançada aos padrões da época e claro, sob as bênçãos das forças religiosas que dominaram tal fase da história da humanidade a ferro e fogo, literalmente.

Bem, o tempo passou, o estudo de Galeno ficou totalmente ultrapassado e usado apenas como fato histórico a envolver a medicina, a antropologia e a psicologia sob uma análise geral e claro, circunscrito ao fato de que sob o ponto de vista filosófico, é tratado nos dias atuais apenas como algo registrado nos anais da história, sendo descartado como estudo sério, faz tempo.

Entretanto, a proposta desse "mestre", se pelo ponto de vista curricular foi um engodo, ao menos serviu para tornar patente de onde vinham as suas ideias reacionárias. Como um religioso extremista e fanatizado, é claro que isso explicou bem a sua linha detestável de aula e claro, coadunado com a repressão, o autoritarismo, o reacionarismo em alta voga nas décadas de sessenta e setenta e tudo isso amalgamado com um cabedal de preconceitos despropositados sob o ponto de vista pessoal da parte desse energúmeno.

Fiz as provas bimestrais, a obter notas boas que me garantiram a aprovação, e a responder o que ele queria ler, sem nunca contestá-lo. Alguns colegas da sala de aula chegaram a se solidarizar comigo pela perseguição que sofri e se admiraram por eu nunca haver respondido a altura ou a formular uma queixa na direção da escola. Bem, eu poderia ter feito isso e não seria descabido pelo ultraje que sofri, no entanto, acho que agi bem ao aguentar o vilipêndio, justamente porque foi exatamente o que ele queria, isto é, provocar-me para gerar a minha reação.

Para quem não sabe qual é a base dessa formulação teórica que adveio da antiguidade e foi tida como a última palavra durante a Idade Média e boa parte da Renascença, veja abaixo o resumo do que o tal professor de "cabelos curtos e ideias medievais" me impingiu durante o ano de 1979, ou seja, segundo Hipócrates e Galeno, os seres humanos seriam divididos em quatro tipos:

Sangue (sanguíneo): O sangue era considerado o humor principal e era associado às características de calor e umidade. Uma pessoa com predominância do sangue era vista como otimista, extrovertida, sociável e cheia de energia. Eles eram vistos como pessoas alegres, comunicativas e entusiasmadas.

Fleuma (fleumático): A fleuma era associada ao frio e à umidade. Uma pessoa com predominância da fleuma era vista como calma, tranquila, paciente e reservada. Eles tendiam a ser observadores, racionais e não expressavam muita emoção.

Bile Amarela (colérico): A bile amarela estava associada ao calor e à secura. Uma pessoa com predominância da bile amarela era vista como enérgica, determinada, assertiva e competitiva. Eles eram considerados líderes naturais, com uma tendência a serem dominantes e focados em objetivos.

Bile Negra (melancólico): A bile negra era associada ao frio e à secura. Uma pessoa com predominância da bile negra era vista como introspectiva, pensativa, analítica e sensível. Eles tendiam a ter um temperamento melancólico, com uma tendência a serem perfeccionistas e preocupados com detalhes*.

De minha parte, eu passei de ano a concluir o curso médio, cheguei ao final do ano a comemorar o fato de que estava a participar do meu primeiro trabalho profissional como músico (na banda de apoio do compositor, cantor e músico, Tato Fischer), e também em meio à formação de uma banda cover que tocaria muito na noite paulistana e a ganhar dinheiro (o "Terra no Asfalto"), e igualmente envolvido com os primeiros tempos na formação do "Língua de Trapo".  

Portanto, o aborrecimento saiu da minha mente bem rapidamente ao ponto de que eu nem me lembrar do nome desse senhor. A pensar nas ideias de Galeno, creio que muito provavelmente esse senhor tão reacionário se considerava como um típico "sanguíneo", mas na verdade, era apenas um escolástico medieval a viver o século vinte com uma mentalidade ultrapassada, a se portar como um sujeito anacrônico, parado em um tempo obscuro e ocorrido há séculos.

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Livro: Língua de Trapo (a autobiografia de Luiz Domingues na música - Volume II) - Matilda Produções/Clube de Autores - Lançado em outubro de 2024

É com imenso prazer que eu anuncio o lançamento do segundo volume da minha autobiografia na música, se tratar da minha história pessoal com o Língua de Trapo.

Antes de mais nada, esclareço que este livro não é a biografia oficial do Língua de Trapo, mas sim a narrar uma segunda parte da minha autobiografia pessoal, portanto, é o volume II das minhas memórias e trata da minha experiência em particular, com a minha visão pessoal e tão somente, sobre a fase pela qual eu fui componente do grupo, aliás, duas fases.  

Com essa banda eu tive duas passagens, ou seja, fui membro desde os movimentos iniciais que precipitaram a sua fundação, a participar desde junho de 1979, tendo permanecido até janeiro de 1981. E depois, tive uma nova passagem entre outubro de 1983, até julho de 1984

Logo que as atividades da minha primeira banda, o Boca do Céu, se encerraram em abril de 1979, o vocalista Laert Sarrumor, que também era componente dessa banda, convidou-me a participar de um grupo que estava a ser montado na faculdade de jornalismo Cásper Líbero, instituição na qual ingressara naquele mesmo semestre. O objetivo foi inicialmente apenas fazer um espetáculo de música e poesia para os alunos da faculdade, porém convites surgiram e tal grupo foi a ser requisitado doravante e a crescer no circuito universitário em meio a diversas apresentações e participações em festivais de MPB, quando culminou na fundação oficial do Língua de Trapo, já em 1980. 

Trato sobre tais primórdios nos primeiros capítulos e a seguir a cronologia, falo a respeito de uma metamorfose que não acompanhei in loco, mas absorvi a posteriori, quando voltei e encontrei o grupo inteiramente profissionalizado, a viver um momento de grande expansão em todos os sentidos.

E explano também sobre o fato concreto de que essa, em meio a tantas bandas que tive e ainda tenho na minha carreira longeva, foi a única não exatamente caracterizada como uma banda de Rock, propriamente dita, porém, dentro do seu ecletismo que lhe serve para exercer tão bem a sua verve dentro da sátira e do humor, sua verdadeira vocação artística, o Rock também é uma das ferramentas que usa com maestria para para tirar "sarro e humor" da sociedade.

São muitas as histórias relatadas sobre a banda em seus bastidores, as minhas impressões em meio a dois momentos muito diferentes de sua história, análise de época e um profundo agradecimento aos talentosos colegas com os quais convivi e atuei, com muita satisfação e orgulho.

Língua de Trapo (a autobiografia de Luiz Domingues na música - Volume II)
 
Autor: Luiz Domingues
Editor: Cristiano Rocha Affonso da Costa
Revisão gramatical, diagramação e carta catalográfica: Alynne Cavalcante
Arte e lay-out final da capa/contracapa e material promocional: Victoria Costa
Foto do autor: Lincoln Baraccat
Capa do Compacto "Sem Indiretas" de 1984: Louis Chilson 
Almofada com foto da capa do compacto "Sem Indiretas"de 1984: Amanda Fuccia
Fotos e material impresso que ilustram a capa contracapa: acervo particular de Luiz Domingues (créditos dos fotógrafos nos agradecimentos do livro)
Uma obra proporcionada pela Matilda Produções
Apoio gráfico: Clube de Autores
Outubro de 2024

Vendas pelos sites do Clube de Autores e Amazon: