Lis era uma garota sonhadora e que gostava de desenhar. Através do desenho, esta foi a forma com a qual ele melhor conseguiu expressar a maneira de enxergar o mundo e houve um motivo intrínseco para tal predisposição.
Ocorre que Lis era muito observadora e por guardar tal característica de prestar atenção em todos os detalhes, ela sentia uma necessidade imensa de mostrar o que sentia, e pela via das palavras ela não conseguia ser eloquente o suficiente para chamar a atenção dos seus interlocutores e daí, foi natural que ela aliasse o seu talento natural para o desenho, a fim de depositar nessa forma de arte, toda a sua energia e buscar a expressividade com a qual ela não detinha, definitivamente, como um oradora.
Logo após se formar como desenhista, ela conseguiu um emprego no departamento de ilustrações de uma forte empresa corporativa, mas ali, ante o senso de competitividade inerente desse ambiente, Lis se frustrou ainda mais. Ingênua, ela pensara que a arte seria interpretada da mesma maneira com a qual ela a sentia, mas não, em meio a outros tantos desenhistas a trabalharem em mesas colocadas lado a lado, o clima desse ambiente de trabalho não se mostrara fraternal e muito pelo contrário, os seus pares se portavam com agressividade e individualismo, com cada um a pensar em si exclusivamente, no afã de galgar degraus na carreira e sobrepujar os colegas.
Diante dessa perspectiva, ela que era comedida por natureza, se fechou ainda mais, inibida pela intensa guerra psicológica travada entre os seus colegas e dessa forma, cumpria a sua obrigação a entregar os seus desenhos, porém, invariavelmente eles era ignorados pela chefia e não sem antes sofrer com indiretas a se debochar dos seus trabalhos, desdenhar das influências confessas que ela guardava com carinho em sua memória e que quando foram expostas aos seus colegas predadores, se tornaram motivo de chacota, exatamente para ferir os seus sentimentos e sobretudo por terem se tornado armas para municiar os seus detratores que por conseguinte, consideravam tais artifícios válidos para se minar a concorrência, bem dentro do pensamento pequeno-burguês da aspiração socioeconômica como pilar máximo da vida.
Sem forças para se impor dentro desse parâmetro tão mesquinho que regia os demais colegas e ao mesmo tempo sem perceber que romper com aquela prerrogativa seria muito mais fácil do que ela poderia imaginar, Lis ficou alguns anos a sofrer calada dentro daquele atelier tão tóxico e absolutamente fora do propósito com a qual ela enxergava a arte e a sua própria necessidade de buscar se expressar no mundo, livremente.
Foi um dia então, que um desenho seu foi aprovado pela cúpula e ela nem esperava mais que um dia isso pudesse acontecer, tão acostumada que ficara com a dinâmica de não aceitação das suas ideias, mediante explicações estapafúrdias para se denegrir a sua arte em detrimento de outros trabalhos que alcançaram êxito sem brilho autêntico algum que justificassem as suas respectivas escolhas.
Aliás, ela já nem mais se importava mais com o fato da sua contribuição ser desprezada, quando foi comunicada que um trabalho seu feito muitos anos antes, fora redescoberto em uma gaveta pelo seu chefe e que este resolvera utilizá-lo enfim, ao reconhecer que este desenho continha uma certa virtude mediante o seu auto-decantado crivo como avaliador.
Ora, Lis se lembrou na mesma hora que esse mesmo senhor lhe dissera, quando mandara arquivar o desenho, a dar conta que ele não o sentira dentro do contexto que a empresa buscava e que faltara expressividade na sua concepção.
Então, Liz achou engraçado como o rapaz tenha proposto que o trabalho fosse colocado em exposição, sem no entanto se lembrar do que dissera anteriormente, mas simplesmente ao alegar que o achara excelente, agora nesse novo momento e que o engavetara naquela remota época, por que estava fatigado no dia que o vira e assim, não o examinara com o devido afinco.
Muito bem, Lis aceitou a ideia de seu chefe, no entanto calejada pela vida e outrossim sem grande entusiasmo, exatamente por também já antever que a qualquer momento, algum dissabor poderia advir, haja vista que ela não esperava uma outra atitude vinda das pessoas que ali trabalhavam.
Foi então que o rapaz explicou que o dinamismo da tecnologia não permitiria que a obra finalizada em sua arte final, feita com meios os obsoletos de outrora, pudesse ser lançada na atualidade e que dessa forma, ele enviaria o trabalho para ser restaurado por um profissional bem atualizado e muito celebrado no meio, que usava o que havia de mais moderno em termos de maquinário, para a nova arte final ser publicada com um requinte inimaginável para os padrões de dez anos antes.
Tudo bem, Lis compreendeu e deu o seu aval para que essa providência fosse tomada. Cerca de um mês depois, o chefe ligou e a se mostrar eufórico, lhe disse que ela não iria acreditar como a obra estava valorizada, pois ficara ainda mais realçada!
Ora, Lis sabia que contrariamente ao que ele dissera naquela ocasião do passado, ao desprezar a peça, por alegar não "sentir" que tal desenho se coadunasse com o mesmo nível do restante do material e portanto a justificar descartá-lo, desta feita ele dissera aos berros de alegria ao telefone, que a peça em si ficara muito superior ao bojo do trabalho daquela ocasião, ao se contradizer.
Cética ante tal desmesurada afirmativa e sobretudo sabedora de que ele não mudara os seus valores internos em torno da competitividade em busca de ser sempre ele o vencedor em meio aos perdedores que desprezava, ela foi ao atelier para ver a decantada nova arte final do seu trabalho, que segundo ele, estava encantadora.
Quando ela chegou e viu a peça, notou que ocorrera uma grosseira supressão de partes significativas da sua obra. Ao perguntar ao seu chefe o motivo dessa acintosa adulteração da obra original, o rapaz se pôs a fazer uma longa explicação sobre os mecanismos do super moderno software que o novo arte-finalista usou e que neste caso, esse profissional que ele considerava como um "gênio" no meio, continha a concepção moderna de extrair certas partes do desenho original para exatamente deixar a sua lacuna como uma possibilidade de se realçar partes que ele considerara mais vitais à obra em sua inovadora concepção avantgarde.
E ante a desfaçatez de uma explicação tão absurda para justificar a ruína de seu desenho, Lis não teve dúvida de que mais uma vez estava a ser desdenhada e desta feita com requinte, ante toda essa conclusão infame.
No entanto, houve uma diferença básica desta feita, visto que para ela não importava mais nada, nem a obra em si e muito menos o jogo de escárnio pelo qual as pessoas se portavam dentro daquela empresa, pois ela simplesmente não trabalhava mais ali.
Dessa maneira, ela agradeceu, saiu dali com educação e cinco minutos depois, nem se lembrava mais do ocorrido. Se por acaso ainda se importasse, na verdade ela só teria feito uma pergunta ao seu chefe, sobre o tal desenho: Vamos repristinar a obra, por favor?