Havia um garoto com sérios problemas psicológicos que vivia com a sua avó em uma casa ampla, localizada em um bairro de uma grande cidade. A sua residência se mostrava com um padrão arquitetônico bastante sofisticado, mas estava muito malcuidada, portanto, a impressão que tinha era de decadência, e certamente a assinalar que a família entrara em um processo de derrocada financeira acentuada e mesmo ainda a garantir o imóvel para ali viver, simplesmente não reunia condições para mantê-lo minimamente em ordem, infelizmente.
Dessa forma, o comportamento estranho do rapaz, aliado à aparência degradada da velha mansão, suscitou rumores na vizinhança sobre a casa ser "assombrada" e naturalmente a abrir um enorme leque de especulações nesse sentido de atribuir condições macabras a envolver aquele rapaz e sua avó.
Graças aos seus transtornos mentais, ele adotava um comportamento social bastante irregular com a vizinhança que o cercava. Irregular na maneira de agir e se portar, havia dias em que ele se mostrava simpático a cumprimentar os vizinhos no entorno do seu quarteirão e até oferecer ajuda a idosos para carregar pacotes em supermercados, farmácias e outros estabelecimentos.
Ele fez uma amizade de ocasião com o jornaleiro da esquina e se tornou um hábito passar muitos momentos do dia sentado em um banquinho dentro da banca a conversar animadamente com o jornaleiro e muitos de seus clientes, sobre assuntos variados, do futebol, às atrações da TV, a repercutir as manchetes dos jornais ali expostos e demais fatos do cotidiano.
Mas a contrapartida mostrava dias em que ele se mostrava arredio, com expressão facial cerrada e mal respondia os cumprimentos. Algumas pessoas mais esclarecidas relevavam as lendas urbanas estapafúrdias que circulavam a respeito do garoto e de sua avó e comentavam que possivelmente o rapaz guardava algum trauma por ter perdido os pais e ter sido criado por sua avó, ou que simplesmente havia um diagnóstico psiquiátrico não revelado deveria explicar o caso. Seria ele um paciente diagnosticado com transtorno bipolar? Seria asperger? borderline? Algum grau de esquizofrenia? Talvez se mostrasse como esquizóide?
Bem, não era problema de ninguém, além do próprio rapaz e da sua avó, certamente e além do mais, tirante fases de mau-humor antissocial, o rapaz parecia inofensivo, portanto, não incomodava ninguém, e pelo contrário, nos seus dias mais acessíveis, ele se mostrava gentil, prestativo e sim, muito inteligente e com padrão cultural acima da média pelas conversas que travava.
Eis que um dia ele contou para algumas pessoas que sempre sonhara em ter um cão de estimação, mas que sua avó relutava, principalmente em face ás dificuldades financeiras nítidas que a família enfrentava, haja vista a casa super deteriorada.
Todavia, ele venceu a resistência da sua avó e a vizinhança notou a novidade exatamente no dia em que dois cães ferozes chegaram à residência e dali em diante, todos os moradores se sentiram ameaçados com o rosnar ameaçador dessas duas feras, já em idade adulta e aparentemente sem nenhum adestramento.
Tudo bem que a sua casa mantinha muros altos, mas até para se tocar a campainha, se tornou um terror para os carteiros e demais prestadores de serviços, que por força de suas funções, precisavam ter contato com a proprietária para fins burocráticos e periódicos.
Pior ainda, os pedidos para que houvesse um esforço no sentido de buscar um controle dos latidos incessantes dos cães, irritavam o garoto e sua avó, que respondiam aos gritos que "cachorros latem e isso é natural".
Na mesma proporção da virulência dos cães, o rapaz mudou o seu comportamento e talvez a se sentir temido por ser dono de duas feras, passou a se mostrar impetuoso, a abandonar o seu comportamento amistoso e assim se tornou comum ele passear com tais cães pelas ruas, a conduzi-los pelas respectivas coleiras, é bem verdade, no entanto, raquítico fisicamente, o rapaz mal conseguia controlar o ritmo da passada dos bichos e certamente que se enfurecidos por qualquer motivo, ele não teria a menor condição de os controlar.
O resultado dessa situação foi que os ânimos se acirraram na vizinhança. Então, eis que um dia alguém jogou comida envenenada no jardim da casa do rapaz para matar os animais e ainda bem, o mal maior foi evitado, mas isso deixou o rapaz transtornado. Jurando vingança, ele passou a ameaçar todos, a falar diretamente que atiçaria os cães sobre qualquer um a esmo, até que a pessoa que atentara com veneno se pronunciasse ou que alguém a deletasse.
Naturalmente que tal atitude também revoltou a vizinhança e um clima de guerra se instaurou. Até que uma denúncia anônima motivou a visita da vigilância sanitária e da zoonose da prefeitura daquela localidade, a dar conta que os cães sofriam maus-tratos e que furiosos, se mostravam como uma ameaça aos moradores.
De fato, devido à má condição financeira da família, os cães não tinham para si a melhor alimentação possível, não estavam vacinados, não tinham monitoração veterinária e nenhum adestramento, ainda mais ao se levar em consideração o seu porte avantajado e características agressivas das suas respectivas raças, isso sem contar o fato que haviam sido adquiridas em fase adulta, portanto, algo nada adequado para serem considerados como animais de estimação.
Bem, a avó sabia que sem os cães, o rapaz que tinha os seus problemas psicológicos graves, haveria de piorar e até entrar em um colapso, portanto, se esmerou para atender as orientações dos fiscais ao dar melhores condições para os animais e ao conversar com diversos vizinhos, garantiu segurança, para selar a paz comunitária.
No entanto, isso não durou muito, no dia em que o seu filho passeava com uma das feras e ao ver uma vizinha que vinha na condição contrária na calçada a conduzir o seu cão de pequeno porte, simplesmente largou a coleira e atiçou a sua fera que avançou e estraçalhou o cachorrinho da vizinha. Pior ainda, ela estava com o seu filho pequeno a caminhar junto e ao pressentir o ataque, apanhou o menino no colo e correu o mais rápido que pode para alcançar a sua casa, enquanto ouvia os grunhidos desesperados de seu cãozinho, em plena agonia de morte.
Bem, a polícia foi acionada e assim que tomou depoimentos de várias testemunhas que assistiram esse massacre de suas janelas, as medidas cabíveis foram tomadas.
Pobre cãozinho que saiu para passear com a sua dona e foi trucidado por uma fera incontrolável. Pobre moça que fugiu a tempo, salvou seu filhinho e presenciou o massacre de seu animal de estimação. Pobre vovó que cuidava de um neto problemática, sem recursos e no avançar de sua idade. Pobres animais de grande porte que sem um cuidado maior se tornaram bestas incontroláveis. Pobre vizinhança que se viu ameaçada gratuitamente. Pobre rapaz atormentado, com seus traumas, frustrações e patologias mal curadas, que achou em dois cães, um sentido para a sua vida tão triste, embora não reunisse a menor condição de cuidar de animais de tão grande periculosidade.
Enfim, os cães foram conduzidos para um canil da prefeitura, a senhora faleceu poucas semanas depois e o rapaz foi internado em um hospital psiquiátrico.
Por muitos anos, a casa ficou fechada a se deteriorar ainda mais e ficou de fato sombria. Uma placa de imobiliária a anunciar a sua venda ficou ali pendurada a desbotar mediante a ação do tempo, até que um dia uma equipe de operários apareceu para promover a sua demolição e a seguir, uma edificação moderna foi ali construída.
Porém, por muito tempo antes que tal revitalização fosse promovida, as lendas urbanas ganharam ainda mais força a dar conta de um rapaz atormentado cujo único propósito de vida fora se sentir poderoso por comandar duas armas vivas e assim, talvez representar subliminarmente a sua própria revolta em forma de raiva contra tudo e contra todos.