Ainda em 1989, eu já havia escutado muitos boatos a respeito da criação de uma filial da MTV no Brasil. O grupo Abril Cultural tentara obter a sua concessão de TV nos anos oitenta, mas não passara de uma experimento tal ação, quando montara uma programação de sua responsabilidade mediante um espaço alugado da TV Gazeta de São Paulo, para iniciar os seus trabalhos, enquanto a permissão para ter o seu canal próprio, não saia nos gabinetes de Brasília. Mas isso nunca ocorreu e logo a dita, "TV Abril", deixou o espaço da TV Gazeta.
Mas isso não significou que desistira da ideia, pois ao final dos anos oitenta, não como TV Abril, mas a dar vazão a outro nicho de atuação, eis que a mesma empresa abriu a franquia brasileira da MTV, a famosa "Music Television", um canal exclusivamente dedicado à música, e com o foco na música Pop em geral, com abertura para diversas vertentes do Rock.
A novidade gerou alvoroço no meio, principalmente no patamar abaixo, o dito underground da música profissional, onde eu habitava e sei bem que o sentimento que eu e todos os colegas que militávamos nesse subterrâneo da música, nutrimos em termos de esperanças para que um canal exclusivo para a difusão musical, no sentido de que este novo canal poderia não estar comprometido com os interesses escusos que regiam as resoluções tomadas pelos canais abertos e o seu odiável "apartheid" em relação aos artistas independentes, o nosso caso.
E logo surgiu a nova de que o canal ocuparia como instalação física para os seus estúdios e maquinário para prover o seu aparato técnico, o antigo prédio da extinta Rede Tupi de Televisão, na Avenida Alfonso Bovero, localizado no charmoso bairro do Sumaré, na zona oeste de São Paulo.
Incrível, aquele prédio detinha história, por ter sido o primeiro canal de TV do Brasil a produzir tantos programas, jornalismo e inúmeras novelas que ali foram produzidas a partir de 1950, portanto, um resgate desses, após quarenta anos, haveria de fornecer sorte ao jovem canal musical.
Já em 1990, por volta de fevereiro ou março, eu recebi o telefonema de um amigo de longa data, que havia tomado conhecimento de que uma seleção houvera sido anunciada pela produção da Abril Cultural a fim de recrutar pessoal para trabalhar na emissora que estava a ser formatada.
Haveriam vagas para todo o pessoal técnico, redação e claro, os apresentadores do canal, que seriam chamados como: "VJ's", para cooptar a ideia antiga a cerca dos "DJ's", das emissoras de rádio.
O meu amigo ficara eufórico, pois recebera a informação de que privilegiariam pessoas que tivessem bom conhecimento do mundo da música, não sendo necessário ser jornalista ou ter curso universitário de rádio & TV, para pleitear uma vaga.
Então, ele exortou-me a ir com ele nessa seleção, que fora marcada para ocorrer em uma famosa casa de espetáculos situada na zona oeste de São Paulo (Aeroanta, localizada no Largo da Batata, no bairro de Pinheiros), em um dia de semana no período da tarde.
Eu ainda argumentei que não desejava participar dessa seleção, pois a despeito de naquela época estar a viver um breve hiato sem estar inserido em uma banda de carreira, o meu objetivo seria prosseguir na luta, mas ele logo contra-argumentou a dizer-me que isso em nada atrapalharia a minha carreira e pelo contrário, se eu fosse aprovado, muito pelo contrário, eu deveria associar tal fato como uma grande oportunidade para abrir portas e conhecer contatos dos patamares mais altos da esfera musical, ou seja, a facilitar a minha carreira, em qualquer outra banda pela qual eu fosse atuar, doravante. Certo, um argumento sensato.
Então, ele mesmo prontificou-se a datilografar (sim, a maioria das pessoas ainda não acessavam computadores, nessa época) e assim, preparou o meu currículo e se a ideia fosse assim tão simples, a denotar valorizar-se uma história na música e "entender" minimamente desse universo, o meu histórico ficara bem razoável.
Eu tocava desde 1976, passara por bandas com projeção, gravara discos e participara bastante de programas de TV e rádio, ou seja, acumulara uma significativa bagagem pessoal.
E sobre conhecimentos musicais, é óbvio que eu não era nem um expert, tampouco musicólogo catedrático, mas ao acompanhar o Rock com foco (e outras vertentes, igualmente), desde 1968, pelo menos, a minha vivência não era nada desprezível, convenhamos.
Então, em uma tarde quente de verão de 1990, eu e o meu bom amigo, Carlos Muniz Ventura, fotógrafo de algumas capas de disco que eu gravei, fomos ao apontamento.
Entretanto, assim que aproximamo-nos da entrada do Aeroanta, eis que toda a nossa inocente expectativa gerada em torno de música, propriamente dita, demoliu-se por completo, ao verificarmos que a gigantesca fila formada na porta de tal estabelecimento, estava composta por modelos, meninas muito bonitas em predominância, com "photobook" debaixo do braço e todas, extremamente produzidas, exatamente prontas para um teste de câmera, para compor elenco.
Foi quando sob um arroubo de consciência, eu e o Carlão travamos um rápido diálogo a dar conta que não haveria nenhum cabimento em postarmo-nos naquela fila, pois o critério para a seleção seria pautado pela beleza física dos postulantes, desenvoltura diante de uma câmera e talvez a dicção e capacidade para pronunciar palavras em idiomas estrangeiros, notadamente o inglês.
Eu nada tenho a reclamar sobre tais critérios, é bom fazer a ressalva, mas definitivamente, "entender de música" seria o quesito menos importante ali e então, demos meia volta e abandonamos resolutamente a nossa equivocada pretensão.
Saber quem foi Ray Davies ou Peter Hammill, ou mesmo citar a discografia do Traffic, seria irrelevante para sensibilizar um recrutador, certamente.
Antes de encerrar esta crônica, preciso estabelecer uma ressalva: a despeito da maioria dos VJ's e redatores que passaram por tal emissora, certamente não entenderem patavina de música, houveram exceções honrosas e no primeiro time de profissionais que assumiu, em 1990, eu tive ali três amigos que foram (são) muito bem preparados e bem-intencionados, sem dúvida alguma: Gastão Moreira, Fábio Massari e Luiz "Thunderbird".
Além de pessoal da parte técnica, onde também houveram pessoas muito gabaritadas, tais como Eduardo Xocante e César Cardoso. Mas a imensa maioria que ali trabalhou, fora contratada pelos critérios que animaram aquelas meninas bonitas que ficaram horas na fila do Aeroanta, com o seu Book de modelo em mãos...