Demora para nós percebermos a lógica
do tempo. No início, em meio ao torpor
daquela fase em que nem compreendemos o que somos enquanto unidade corpórea, o
que nos dá uma pálida ideia sobre como funciona a vida, são signos adquiridos pela
observação dos hábitos dos adultos.
Te acordam quando a luz do sol
está proeminente e te alimentam. Todos parecem apressados, afoitos, atarefados. O sol vai a pino e a alimentação
parece mais robusta e com caráter formal, mais adultos sentam-se perto.
Um dia
você consegue verbalizar e significar que aquele ritual alimentar e familiar se chama: “almoço”.
A luminosidade ainda é clara, mas
nitidamente apresenta uma outra matiz. As sombras mudam no quintal e outra refeição lhe é
servida, mais frugal.
O calor se arrefece e assim, parece um período mais letárgico,
como se os adultos estivessem a perder a sua vitalidade. Demora para
entendermos que é o fim da jornada de trabalho (aliás, o que é trabalho?), e todos estão cansados pela
labuta do dia.
Chega o período do escurecimento
e mesmo que você já tenha absorvido que isso ocorre de forma cíclica, outros signos
te fazem perceber haver nuances interessantes para cada momento.
Costumava ser a hora que o papai chegava em
casa todo arrumado e falava comigo.
Era um momento de extrema felicidade em minha ótica,
pois inexplicavelmente, quando eu acordava ele não estava em casa, assim como a mamãe que
era sempre presente.
Demora para entender o andar do
tempo e a ordenação da sociedade.
Sem fazer sentido algum, haviam dias que
o papai estava em casa nos períodos claros, com a incidência da luz do sol quente no quintal. Ele parecia
alegre e pronto para brincar, e além do mais, as suas roupas eram mais alegres, sem a sisudez das vestimentas
pesadas com as quais eu o via nos períodos escuros e mais que isso, não muito
alegre e disposto a interagir comigo, sob as trevas.
Mais signos: nos dias em que a
família ficava unida nos períodos claros, havia muita música e risadas.
A vitrola, um móvel pomposo
instalado na sala, tocava alto o dia inteiro. A TV, aquele tubo enorme onde eu
via imagens difusas de pessoas e bichinhos, também funcionava a todo vapor...
Os aromas e sabores produzidos na
cozinha, também pareciam variar conforme os períodos. Tudo mantinha um significado
e a cada dia, isso ficava mais claro, embora na percepção daquele instante,
parecesse absurdamente lenta a compreensão disso tudo.
Nessa fase da vida, superada a
constatação de que haviam períodos de momentos claros e escuros, uma percepção mais
sofisticada me fizera entender que dentro dos períodos de luz e trevas, haviam
outras ordenações e estas eram múltiplas.
Signos externos os mais diversos
faziam sentido e ajudavam a compor um mosaico de significados.
Foi como um jogo
de quebra-cabeças e as pequenas pecinhas, sem sentido se vistas de forma
individual, precisavam ser encaixadas para fazer um sentido maior.
Estava a ficar cada dia mais
interessante vivenciar esse montante de possibilidades. E quanto mais eu compreendia, mais elementos precisavam ser aprendidos, pois nesta altura, eu não raciocinava nesses termos, mas intuía que viver era uma experiência surpreendente.
Dia, hora, minuto, semana, fim de
semana... tudo foi novidade e tudo se transformaria em uma mera rotina, em breve.
Muito bom, infância...lembranças muito boas.
ResponderExcluirExato, essa série de crônicas está focada nessa memória remota, fazendo um paralelo com a visão do adulto e do bebê em seus primeiros tempos de vida e o início do aprendizado.
ExcluirGrato por ler e comentar, amigo Kim !!
Oi, Luiz
ResponderExcluirNão sabia do teu lado poético! Muito lindo o teu texto!
Até lembrei da minha infância.
Adorei!
Mas que maravilha que tenha apreciado, amiga Janete !
ExcluirJá é a terceira crônica que escrevo focando na memória remota do início da vida. Fiquei muito contente por saber que gostou do enfoque e do texto em si.
Fiquei feliz por sua visita e comentário elogioso !!
Que texto gostoso, com sabor de infância. Me veio tantas cenas na cabeça e a alegria que ficava quando descobria algo corriqueiro, como por exemplo: que um lado da rua há os números ímpares e do outro, os pares. Fiquei tão feliz com essa descoberta..
ResponderExcluirEstou muito contente por verificar que essa linha de crônicas que estou desenvolvendo, está proporcionando aos leitores a autoreflexão sobre o aprendizado primordial adquirido na tenra infância e que geralmente banalizamos, relegando-o ao esquecimento total.
ExcluirRelembrar esses fatos tão pueris e distantes é um reencontro com nossa própria história. Estou fazendo isso e me alegra ver que inspiro outras pessoas a fazer o mesmo.
Super grato pela leitura e postagem de comentário rico !!
Muito importante esse resgate de descobertas, essas lembranças, pois quando nos tornamos adultos, esquecemos de boa parte dos detalhes, de alguns sentimentos. Muitos adultos esquecem o que fizeram quando crianças e adolescentes e se tornam pais intolerantes. Se lembrarmos as alegrias, os medos, as inseguranças, as travessuras, que fizemos em cada fase de nosso desenvolvimento, podemos nos ver através dos filhos, dos sobrinhos, da criança do vizinho e nos tornar mais amigo, mais companheiro do que acusador ou reclamão.
ExcluirSuas crônicas são de um fundamento importante, que bom que compartilha conosco.
Muito bom, amiga Jani !
ResponderExcluirA grande questão é essa, não nos esquecermos de nossas lições aprendidas, mesmo na tenra infância, pois todas são importantes.
Grato pelo elogio, que tomo por um grande incentivo a prosseguir.