segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Crônicas da autobiografia - A quebra do encanto - Por Luiz Domingues

                    Fatos que aconteceram no decorrer da carreira toda 

Eu sempre li muitos relatos escritos por atores, sobre o seu ofício e o quanto tratam o momento de suas respectivas atuações como algo ritualístico, praticamente a configurar tal momento especial e tão caro para eles, como um autêntico exercício sacerdotal, no sentido de estarem conectados com uma força mística, sobrenatural ou algo que o valha. Faz sentido e eu sempre tive em mente que não apenas na dramaturgia, mas literalmente em todos os ramos da arte, o mesmo fenômeno ocorra, ou seja, o elo do artista com uma energia extra-física é algo absolutamente vital para garantir o papel máximo da arte, que é justamente o de nos levar sempre a um patamar maior no grau civilizatório.

De onde sai o impulso para alguém escrever tantas palavras, nas diversas ramificações da literatura e nos prover assim de ideias, sinapses, cultura e tanta sapiência contida nos livros? E o que faz o pintor ou escultor a dar forma aos traços e espalhar beleza através das cores?

Para os bailarinos e coreógrafos a pergunta é: de onde sai tanta inspiração para obter dos movimentos do corpo humano algo mediante tanta expressividade e sensação de expansão libertária? 

E os cineastas que sintetizam todas as artes em uma película? Como podem conceber uma avalanche sensorial total concentrada em uma tela, e neste caso, a não importar o seu tamanho para o espectador?

Então, eu sempre tive em mente que a mesma sensação de magia que os atores descrevem quando falam da sua atuação no teatro, principalmente, ocorre ipsis litteris com os músicos. E até na coincidência entre tais ramos, pois fazer um show ao vivo para nós que somos da música, tem o mesmo impacto e sensação que os atores sentem quando estão a encenar uma peça no palco do teatro e com um adendo: quando eles falam que atuar na TV e no cinema tem características diferentes, mas no cômputo geral tem também a sua "magia", nós também temos essa experiência dupla.

Pois neste caso, acredito que para um ator, mesmo sem plateia e mediante a suposta frieza de um estúdio de TV ou "set" de cinema, quando o diretor dá a ordem para a equipe técnica filmar e ele, ator, entra na cena, a sua entrega para viver a personagem ao máximo deve ter o impacto pessoal da sua consciência, ao lhe manter conectado com a ideia de que a sua atuação ali está sendo registrada para sempre. Pois é o mesmo que nós músicos sentimos no estúdio ao gravarmos discos, pois se ali não existe a emoção do público a reagir, a ideia de que estamos a registrar algo de forma histórico e que vai nos marcar para sempre, é emocionante.

A falar detidamente sobre os shows ao vivo, sim, quanto mais público, mais energia sentimos. E claro que o profissionalismo nos impele a nos apresentarmos com a mesma energia e entrega mediante público pequeno ou até inexistente, porém, é fato que a energia é muito maior na proporção da sincronicidade estabelecida com o público e se ele é numeroso e vibrante, a energia trocada é muito maior. Em suma, tendemos a tocar melhor com público numeroso e animado.

Todavia, há o lado obscuro dessa simbiose, pois nem sempre temos a sorte de contar com uma audiência absolutamente uniforme no sentido do artista e da plateia vibrarem na mesma faixa energética.

E invariavelmente, nos deparamos com pessoas fora do contexto completamente e que parecem ter pago o ingresso e adentrado o local aonde vamos nos apresentar para quebrar a magia, completamente.

Eu sei que tem gente que o faz de forma involuntária, sem intenção de atrapalhar o espetáculo, mas há também a presença do sabotador contumaz que deliberadamente vai a um show com má intenção. No entanto, não vou entrar nesse mérito agora e talvez eu escreva no futuro uma crônica, conto ou matéria jornalística para tratar especificamente desse assunto desagradável, mas aqui, quero falar apenas sobre o prejuízo que a ação nos causa, sem especificar se é proposital ou não. 

Então, o fato em si é que você está a tocar, o clima está ótimo, a banda está super entrosada e o público responde com entusiasmo, mas subitamente alguém insiste em lhe chamar pelo nome, aos berros, tentando fazer com que você o mire, mesmo em um trecho da execução da canção na qual é crucial manter a atenção nos companheiros ou vice-versa. E a pessoa nem pensa nisso, é claro, e só quer que você a olhe nesse momento inconveniente e com essa intenção obsessiva, simplesmente não para de berrar.

O primeiro inconveniente é que os seus gritos ensandecidos, logicamente incomodam as pessoas que estão ao seu redor, a lutar freneticamente com o alto volume do som executado pela banda e reproduzido pelo equipamento de "PA". Segundo, que nem passa pela cabeça dessa pessoa que o músico está exatamente a viver aquele momento mágico, envolto aos efeitos da iluminação e sob um som de alta potência, a vibrar intensamente com o som que está a produzir do seu próprio instrumento e também a absorver e a se deixar envolver emocionalmente com os sons emitido pelos instrumentos comandados pelos seus companheiros e simplesmente de forma súbita, alguém insiste em lhe chamar aos berros.

Mais do que isso, você está a exercer a conexão mágica da música, ao sentir a expressividade máxima da canção que ajuda a interpretar juntos aos seus colegas, está a sentir cada nota a vibrar no seu corpo inteiro, a mergulhar na letra e na mensagem que está a passar para a sua audiência, portanto, também a atuar como um ator que interpreta e repassa um sentimento ao público e o sujeito está ali na plateia a berrar para lhe tirar dessa ação quase mediúnica.

Cansado de ser interrompido tal qual uma campainha de porta ou chamada de telefone que não vai parar enquanto você não atender, você resolve olhar e a pessoa apenas sorri para você ou para gesticular com um sinal de "joia" e acredite, se for isso está ótimo, pois há os que querem "puxar conversa" no meio do show, ao vislumbrar que você se esforce para no meio daquela completa realidade inaudível, entender o que ele fala e o sujeito quer uma resposta, como se estivéssemos a conversar na sala de estar de uma residência silenciosa.

E para não deixar de mencionar os que enviam bilhetes escritos e esperam que você se abaixe, pegue o pedaço de papel, leia a mensagem e sobretudo, atenda o seu pedido. Nesse caso, geralmente se trata de pedido de música e que muitas vezes não está prevista  para ser tocada naquele espetáculo. Há também os números de telefone enviados pelas moças mais entusiasmadas e não posso ser hipócrita ao afirmar que nesse quesito não seja algo agradável.

E há também a agressividade da parte de pessoas que vão aos shows para provocar. Mesmo em meio a plateias totalmente favoráveis, com fãs da sua banda em imensa maioria no auditório, é sempre possível haver alguém com má intenção no ambiente e que vai tentar te desestabilizar, com ou sem motivo e claro que se trata de uma prática abominável.

Há os que gritam de longe, não exatamente para lhe chamar a atenção durante a performance, mas entre as músicas. Geralmente são pessoas bem intencionadas que querem tecer algum comentário positivo e bem rápido, para extravasar a sua própria excitação pessoal, isso eu entendo. Os piadistas de ocasião também aproveitam para exercer a sua manifestação graciosa e muitas vezes são felizes e provocam risadas generalizadas inclusive dos artistas que estão no palco e também ocorrem momentos de diálogos francos com o artista que estiver a falar no microfone, mas neste caso, por consentimento do artista ou até provocado por ele mesmo para haver uma interação rápida com a plateia.

Outro fato que ocorre com certa regularidade, é da parte de pessoas bem intencionadas que percebem algum problema técnico e no afã de ajudar, chamam a atenção do artista. Claro que a intenção é boa, mas se procurassem algum membro da equipe de produção para relatar o que viram, seria bem melhor, mesmo porque, no meio da balbúrdia do som e absorto no foco para interpretar, o músico não vai abandonar a sua ação, deixar o instrumento de lado e deixar os companheiros sem o seu suporte para ir resolver uma pendência, seja ela qual for. Para tal função emergencial, existem os roadies e técnicos da equipe, além dos produtores do espetáculo.

Por fim, como apreciador de música, fã de muitos artistas e frequentador de shows, eu nunca cometi com colegas meus e nem mesmo para com ídolos que me influenciaram fortemente, tal deslize de lhes tirar a atenção durante as suas respectivas performances ao vivo, mas nem todo mundo tem essa mesma consciência quando está na plateia, ao manter a elegância de apreciar uma banda a se apresentar.

E quando em cima do palco, mesmo com boa intenção, eu sempre lamentei muito quando alguém insistiu em me tirar daquela espécie de "transe mediúnico" que me elevou na frequência para um mundo etéreo, algo que só a música é capaz de proporcionar com tanta assertividade no campo metafísico. 

Tal quebra do encanto no qual eu estava conectado equivale mais ou menos a estar a sonhar com o paraíso e ser acordado abruptamente mediante gritos e acredite, essa conexão uma vez quebrada, jamais se repete na mesma intensidade. É possível se criar outra conexão no show subsequente, que será diferente, exclusiva, mas naquele show que você estava a fazer e no qual foi interrompido, infelizmente não vai conseguir estabelecer a energia mística novamente.

E claro que eu sempre detestei e continuo a detestar deixar tal vibração por conta de uma quebra do encanto feita por alguém que não leva essa magia em consideração.

Nenhum comentário:

Postar um comentário