domingo, 30 de julho de 2017

Autobiografia na Música - Kim Kehl & Os Kurandeiros - Capítulo 55 - Por Luiz Domingues

Após o início das gravações do EP Seja Feliz, ao final de julho de 2016, a banda naturalmente imbuiu-se dessa missão com grande entusiasmo. Todavia, sendo uma banda ativa em termos de agenda, Os Kurandeiros comemoravam o fato de que mesmo ao sentirmos na pele os efeitos da diminuição de oportunidades generalizada no setor cultural em geral, no caso, ainda assim, elas apareciam para a banda.

Ótimo, vamos em frente, então, mesmo quando as oportunidades que surgissem, não fossem exatamente dentro de nossos anseios. Foi o que ocorreu em 19 de agosto de 2016, quando a banda teve uma apresentação agendada em um curioso espaço cultural, encravado em um ótimo ponto de um bairro nobre da zona sul de São Paulo, mas mesmo assim, diante de tal localização privilegiada, ostentava uma estrutura absolutamente underground, mais a se parecer com espaços decadentes do centro da cidade, reutilizados como equipamentos culturais "modernosos" e a usar a crueza das suas instalações precárias como um tipo de trunfo cultural ao passar a ideia de uma espécie de "élan avantgarde". 

Espaços assim geridos por jovens cuja identidade cultural apontavam para tendências preocupadas (muitas vezes obcecadas), em apontar para o "futuro", geralmente esbarravam em idiossincrasias que muito fazem com que eu recorde-me da mentalidade Pós-Punk que dominou a cena oitentista. O aspecto da rudeza desoladora com ares pós apocalípticos, fora uma constante naquela década e a decadência dos escombros, tratada como um cenário ideal para fomentar tais ideais dessa gente, e claro que a minha formação cultural ou melhor a dizer, contracultural sempre apontou para o inverso disso tudo. 

Nos anos 1990, mesmo não fechados mais com o Pós Punk, explicitamente, muitos jovens flertaram com a continuidade (ou continuísmo, como queiram), dessa mentalidade e isso refletiu-se em dúzias de casas noturnas espalhadas por São Paulo e sobretudo como paradigma monolítico de quase todas as bandas de Rock da cena underground paulistana e com a qual convivi muito no meu tempo a bordo do Pitbulls on Crack.

Pois foi exatamente o que eu senti quando adentrei as dependências do espaço onde tocaríamos, denominado: "Feeling Music Bar", um misto de sala de ensaios para bandas & salas de aulas de música e espaço cultural para apresentações musicais. 

As suas dependências rústicas e multiuso lembraram-me o espaço que a revista Dynamite manteve ao final dos anos oitenta e início dos noventa, na Rua Dr. Vila Nova, pelas mesmas características. 

Gerenciado por gente jovem e certamente antenada na movimentação cultural contemporânea de segunda década de século XXI, eu posso afirmar que a orientação ali foi a do "Indie Rock", e claro que absolutamente coadunada na realidade com a qual o Rock dessa atualidade investia-se em seu micro nicho no panorama artístico brasileiro, ou seja, a fomentar uma Era de absoluto sucateamento do espaço para a cena fora do mainstream, a dita música "independente".

O que considerava-se "Rock" nesse instante, remontara aos pequenos nichos destinados ao Indie Rock e o Heavy-Metal. E sob uma terceira via, ainda de menor expressão, para os saudosistas de sonoridades do passado, e não necessariamente fechadas em apreciadores das estéticas sessenta-setentistas, mas a dividir espaço com oitentistas e noventistas ou seja, para artistas como nós, o micro espaço fica restrito aos jurássicos dos jurássicos... por isso também, uma banda como Os Kurandeiros mereceu a menção honrosa, pois ao se manter com a vida ativa e mais que isso, com alta rotatividade, e ao se levar em consideração todas as condições adversas, acima mencionadas.

Mas a falar do espaço citado, além das precariedades inerentes, a mentalidade da casa em programar shows coletivos, como se fossem mini festivais, com muitas bandas absolutamente desconhecidas, a estabelecer uma programação "obscura do obscura do underground", precisa ser analisada sob dois aspectos, um bom e outro mau. 

O lado bom, é que em meio a uma época tão árida, uma casa que propunha-se a abrir espaço para bandas dessa natureza, mereceu aplauso, pois a despeito de qualquer adversidade, onde essas bandas de garotos iriam apresentar-se e dar os seus primeiros passos?

Antigamente havia uma profusão de oportunidades para artistas iniciantes, a começar pelos festivais colegiais, incluso as redes públicas, estadual e municipal. Lembro com carinho, inclusive, de que minha primeira banda nos anos setenta ("Boca do Céu", com história inteiramente relatada no início deste texto autobiográfico e à disposição neste Blog e também no meu Blog 3, além do livro impresso), teve duas oportunidades dessa monta e foi o grande "debut" dela, enquanto banda e também da minha carreira em particular e para os companheiros de então, incluso o hoje renomado, Laert Sarrumor. 

Mas nos tempos mais atuais, isso não ocorria mais, portanto, parabéns ao "Feeling Music Bar" por ter tido essa predisposição.

Já o aspecto negativo, foi que por programar tantas bandas para uma noite só, a bagunça na organização se revelou inevitável e por ter sido assim, para uma banda com a nossa história e pelo nosso currículo, assim que entramos e vimos a vibração ali reinante, é claro que questionamos internamente o que aquela apresentação agregar-nos-ia artisticamente. 

No entanto, banda resiliente e sem nenhuma vaidade como a nossa, não haveria de ter constrangimentos. Em outras bandas por onde eu passei, talvez a atitude fomentada por outros membros fosse a de insistir em cancelar e evadir-se do local sumariamente, inclusive com revolta, porém Os Kurandeiros não eram assim e dessa forma, mesmo diante de um panorama bastante questionável em termos de dividendos a serem capitalizados, artisticamente a falar, subimos ao palco e demos o nosso recado. 

Bem, o equipamento não ajudou em nada. Tratou-se de um palco até razoável em termos de dimensão, ao lembrar o de casas mais bem aprumadas por onde já havíamos tocado, mas a sonoridade ali, apesar da existência de um PA e backline aceitáveis, deixou a desejar. Dá para ver no vídeo existente com um resumo da nossa apresentação, que foi sofrido para a banda, mas levamos com dignidade até o final, é claro.

Sobre as outras bandas, eram todas completamente desconhecidas e achei engraçado quando um rapaz da produção citou-as para nós, como se fossem reconhecidas por um grande público. Talvez no universo desse circuito obscuro do obscuro do qual nem consigo conceber, tenham os seus seguidores, tomara que sim, mas realmente, eu nunca havia ouvido falar de nenhuma sequer e apesar dos pesares, eu costumo ter uma noção do que ocorre na cena underground pelos contatos que tenho em diversos setores da música, incluso amizade com jornalistas bem informados sobre os seus subterrâneos, mas o fato de não fazer nem ideia de quem eram aquelas bandas, realmente espantou-me. Bem, boa sorte para todos que ali apresentaram-se e que sonham com o êxito na vida artística.

Sobre o som dessa garotada, algumas eram formadas por bons músicos, devo reconhecer pelo que vi e ouvi, mas a orientação da maioria era pelo Heavy Metal ou pelo Indie Rock, portanto, não despertou nenhuma comoção da minha parte. Somente um duo acústico, formado por dois violonistas com tendência "Folk", agradou-me mais pela obviedade de ser algo mais palatável à minha formação musical. Mas por não ter anotado os nomes de todos para a minha ficha pessoal do show, não recordo-me quem eram, para cita-los, agora.
Um resumo do show que fizemos no Feeling Music Bar, em 19 de agosto de 2016

Eis o Link para assistir no You Tube:
https://www.youtube.com/watch?v=diOTpVKM-Cs

Passada essa apresentação todos os esforços foram concentrados no arremate da produção do novo álbum e de fato, ele logo finalizou-se e apresentou-se para lançamento. Nesse ínterim uma casa tradicional da zona leste de São Paulo, sinalizou com a ideia de um projeto para Os Kurandeiros. Falo disso a seguir.

Continua...

Nenhum comentário:

Postar um comentário