Aconteceu em 1967, o ano em que o reflexo contracultural começou a capturar-me, ainda que subliminarmente
1967 foi o ano em que tudo ocorreu, de fato. Se todas as mudanças sociocomportamentais e contraculturais vieram como uma avalanche em progressão através dos anos imediatamente anteriores, foi nesse ano que o dito "desbunde" escancarou-se de uma forma irreversível.
Eu completei sete
anos de idade no começo do segundo semestre desse ano, portanto, ali entre seis e sete
anos, vivi esse período memorável. Diante de tais fatos e notoriamente como envolvi-me
a posteriori diretamente na música e por conseguinte, na vida cultural ativa, no avançar dos
anos setenta, obviamente que toda a informação que eu obtive mais concisa para alcançar tal ponto, chegou
com grande atraso.
Mas aí eu levo em consideração um fator para não lastimar
veementemente ter nascido antes e assim ter podido aproveitar melhor os anos
sessenta: apesar de ter sido criança nessa década, eu testemunhei alguns
acontecimentos e dessa forma, claro que isso foi longe do ideal, pois muito melhor seria
ter tido a liberdade e a consciência de um jovem adulto, ou no mínimo, estar a
viver a adolescência para melhor absorver aquela carga gigantesca de informações, todavia, sou grato por ter podido estar vivo nessa época e
mesmo absorto na ingenuidade da infância, ainda assim, observei acontecimentos que
hoje reputo, são históricos.
Em termos de 1967, por exemplo, foram muitas as
boas lembranças, mas nesta crônica em específico, eu vou citar apenas um fato isolado,
dentro de um contexto que por si só, fora muito marcante.
Pois lá estava eu, em
uma noite de outubro de 1967, com a companhia de meus pais, na sala de estar do
apartamento que habitávamos no bairro da Vila Pompeia, na zona Oeste de São
Paulo, e com a atenção inteiramente concentrada no aparelho de TV. O clássico
televisor arcaico a transmitir as imagens em preto e branco, com aquele contraste super
exagerado, típico da época e também a torcer para a imagem ficar estabilizada, visto
que era muito comum ter que levantar-se a todo instante para mexer no botão que
controlava a faixa horizontal e que desregulava-se com bastante frequência.
O Festival de MPB da TV Record, parava o Brasil, tamanha a sua popularidade e a trazer em seu bojo uma série de questões, inclusive o viés da política, visto que grupos antagônicos a simpatizarem com os dois polos ideológicos dominantes, enxergavam na atuação dos artistas, a tomada de posição, pró e/ou contra e dessa forma, as torcidas acaloravam-se para os dois lados da polarização em clima de Guerra Fria.
O Festival de MPB da TV Record, parava o Brasil, tamanha a sua popularidade e a trazer em seu bojo uma série de questões, inclusive o viés da política, visto que grupos antagônicos a simpatizarem com os dois polos ideológicos dominantes, enxergavam na atuação dos artistas, a tomada de posição, pró e/ou contra e dessa forma, as torcidas acaloravam-se para os dois lados da polarização em clima de Guerra Fria.
Fora da questão política, mas também a
causar furor e dividir opiniões, os artistas avant-garde chegaram com tudo para
quebrar a formalidade dentro da MPB e antenados no desbunde internacional em
curso, eis que os hippies cabeludos chegaram com as suas guitarras estridentes,
e no uso de um figurino multi-colorido, para gerar muita polêmica e chocar os conservadores.
No entanto, nessa noite em específico, aconteceu
algo inusitado, tão surpreendente e estimulante aos olhos de um menino com sete
anos de idade, quanto a presença dos hippies com as suas longas cabeleiras e suas guitarras.
Eis que um artista chegou para cantar uma canção tradicional, um samba-canção
mediante o uso de violão, mas amparado pelo apoio da orquestra do festival, com
um arranjo bonito, porém bem tradicional, daqueles que eu já tinha ouvido há
anos em programas musicais tradicionais da TV.
O sujeito começou a cantar e pareceu
incomodado, pois definitivamente, ele não estava a vontade para dar o seu recado. A letra da sua canção
falava sobre um tema super popular, o futebol e como tantas músicas com esse
mesmo tema, ele falava sobre um certo: “Beto”, que seria um jogador e que era “bom de bola”
etc. e tal. Naturalmente a intenção fora metafórica a tecer crítica política, devo reconhecer a genialidade do artista em buscar os meandros subliminares da poesia.
Foi quando subitamente o seu desconforto deu
mostras que havia avolumado-se. Ouviam-se vaias e de-repente, o rapaz, que
chamava-se: Sérgio Ricardo, passou a balbuciar entre a sua cantoria, que não estava
a achar o tom correto para entoar a melodia na harmonia correta.
Bem, tratou-se de um conceito da teoria musical que
eu não compreendia muito bem nessa ocasião, mas simultaneamente, escutei a minha mãe a
explicar que o rapaz não estava a conseguir cantar no tom e isso seria algo
muito constrangedor para ele, ao gerar a sua compaixão pelo cantor em questão.
Ora, hoje eu sei, o sistema de
monitoração para alimentar shows ao vivo, foi começar a ser aperfeiçoado, ao final daquela
década e que até então os artistas apenas baseavam-se no que ouviam como uma
rebarba sonora muito confusa, mediante o sistema de som direcionado ao público
e que este também era bem simplório nessa época.
Levo em consideração nos dias atuais,
que ele também teve a sabotagem de parte do público, que por questão de simpatia
política, intensificou a vaia, para desestabilizá-lo e que talvez tenha faltado
uma maior sensibilidade da parte do maestro que regia a orquestra, para dar a
ordem para que os seus músicos imprimissem uma dinâmica mais acentuada, para o
cantor poder se achar na melodia.
Tudo isso, de forma separada ou somada (pior ainda), certamente
que atrapalhou o rapaz. Mas ali, no calor dos meus sete anos de idade, o que eu
vibrei mesmo, foi quando o artista enlouqueceu de vez, ao levantar-se do
banquinho que usava, para de forma tresloucada, gritar vários impropérios à plateia, ao acusá-la de haver desejado
tal sabotagem e assim, finalmente ele deu-se por vencido ao dizer: -é isso o que vocês querem?”
E a seguir,
o artista tratou por estraçalhar o seu violão com a canção ainda em plena execução e depois, transtornado, jogou os seus pedaços, agressivamente em direção ao
público.
Bem, só fui entender a questão bem depois, mais
maduro e apto a compreender o jogo de interesses que movimentava a audiência do
público. Assim como também fui conhecer melhor a proposta artística do Sérgio Ricardo
e descobrir o seu valor tanto na música, quanto no cinema, enquanto um diretor
a buscar o difícil caminho do cinema de arte.
Contudo, 1967 foi isso. Independente dos motivos observados pelo Sérgio Ricardo, para quebrar o seu violão, xingar a plateia e evadir-se do palco ao
demonstrar a sua contrariedade, tal ato foi algo que marcou-me como algo muito fora do
padrão em relação àqueles artistas convencionais da MPB, que costumavam apresentarem-se a trajar “smoking”,
e a fazer uso de um gestual bem piegas, além de que, eu não sabia, mas faltava
um triz para que eu tomasse conhecimento sobre um rapaz "narigudo", nascido na Inglaterra e
que na companhia de seus três amigos, tão loucos quanto ele, estava a fazer algo ainda mais impactante em suas
apresentações, há pelo menos uns três anos e que ainda o faria com contumaz
volúpia, por um bom tempo.
Sérgio Ricardo não soube, mas a quebra do seu
violão abriu-me por uma via torta, a nutrir o apreço por essa turma de “mods” britânicos,
algo para ser levado para o resto da vida, inclusive.
Como diz o famoso
documentário sobre o festival da Record, foi mesmo em “uma noite em 67” que eu intuí que “The
Kids are Alright”.
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