Quando não se tem um teto com amor”
Roberto Carlos
Há exatamente dez anos atrás (1986)* , eu publicava meu primeiro trabalho em livro, um pretensioso "Soneto Eterno", influenciado (eu cria) pela obra de Schopenhauer. O tal soneto (nada ortodoxo), pretendia tratar da eternidade da matéria.
Essa primeira aventura literária saiu pela editora Shogun Arte, de propriedade do casal Paulo Coelho (hoje nosso mais importante escritor, embora muitos "acadêmicos" não reconheçam seu valor, talvez por não compreenderem o conteúdo da obra), e Cristina Oiticica, que é uma pintora simpática e de muito talento (até hoje não esqueci o sorriso que ela me dirigiu, quando lá estive na editora).
Portanto, foi esse soneto eterno, que cheguei a anexar à cantina do cemitério e, para meu espanto, um amigo me disse que viu gente copiando, que iniciou minha ambição literária.
Ao menos publicamente, posto que eu começara a escrever um ou dois anos antes. Não tenho certeza de como foi exatamente esse meu início (minha mãe conta que, muito menino ainda, eu já cantarolava "vocês querem me matar de fome, mas eu aguento porque sou homem") com a palavra escrita. Tenho duas teses.
A primeira seria que fui inspirado nas leituras de um poeta chamado José Enokibara, muito popular no centro da cidade, onde vende seus livros, pessoalmente.
A segunda hipótese teria sido uma paixão por Rita, uma moça que frequentava o baile do Imperial. Ela inspirou-me uma carta em prosa e verso.
Era uma carta apaixonadíssima.
Lembro-me de uma rima assim "É proibido desiludir um rapaz metido a Vinicius de Moraes". Estou mais inclinado para a primeira tese, pois um dos motivos que me levou à paixão foi ela ter dito gostar de poesia. Descobri depois que ela não gostava tanto assim. Afinal, o rapaz metido a Moraes foi desiludido, com poesia e tudo (ela namorou com o baile inteiro, menos comigo).
De qualquer maneira, foi o soneto eterno que abriu quase uma eternidade de sofrimento e exílio social. Primeiro porque -como acontece até hoje- eu tinha de pagar as publicações, e nem sempre tinha condições. Por outro lado, sempre que tentava seguir outra inclinação, fazer algo mais rentável, sofria. Eu queria poesia, com toda radical idade adolescente.
Enquanto eu vivia lendo, minha mãe mandava-me trabalhar, e quanto mais mandavam, digo mandavam porque, com o tempo, irmã, tios e vizinhos aderiram à perseguição implacável. O pior é que eu continuava lendo e escrevendo, convenci- do de que aquele era o meu trabalho. Pobre de mim ! Meus poemas foram ficando tristes, tão melancólicos quanto as crianças de rua ou as flores da sarjeta.
Quando a coisa apertava muito, eu arrumava (ou aparecia) um bico qualquer. Nesses dez anos, para ganhar dinheiro de forma prática, desdobrei-me em contínuo, auxiliar de despachante, recepcionista, inspetor de colégio por um dia (as crianças me chamavam de Cazuza, cientista... entendi que estava exercendo a profissão errada), vendedor de pétalas de rosas (serviço tão descaradamente inútil quanto poético. Chapliniano.
As pétalas eram as últimas homenagens aos defuntos.
Creio, sinceramente, que os mortos me ajudavam, pois ganhava bem, trabalhava pouco e aprendia muito sobre a vida e a morte. Hoje eu não teria mais coragem de executar esse serviço.), caixa da pensão de minha mãe, entregador de jornal (também por um dia, já que logo de estreia quiseram me).
Roubar...ah, eu ia me esquecendo de que, menino, vendia jornal velho para ajudar minha mãe, e que guardei carros na adolescência. E tive que engolir, não poucas vezes, que nunca fiz nada pra ninguém. Por isso, hoje em dia, o que falam de mim é tão importante quanto vômito de bêbado.
Hoje em dia sou um desempregado ortodoxo.
Daqueles que olham o jornal todo domingo, sai na segunda e depara-se com empregos mirabolantes de anúncios mentirosos, a insensibilidade dos "colocados" e volta para casa com uma admiração secreta pelos mendigos, marginais e todas as criaturas fora do "mercado". Mercado esse que quer "jovens" até vinte e três anos. Gente que colabora com esse tipo de sociedade me parece mais indigna que a sobra orgânica dos excluídos.
Enquanto as baratas percorriam meus originais, recebia propostas singulares de editores e "academias de letras", desde que eu pagasse, evidentemente.
Além de outras humilhações "menores". Com o tempo minha sensibilidade ia
secando, o sorriso rareava, a perplexidade tomava-se infinita. O que eu
era, afinal? E a crise de identidade foi inevitável. Brutal.
Um
dia, debruçado na janela, naquela hora do crepúsculo em que os
trabalhadores ortodoxos retos, filhos de Deus que cumprem um destino e
retomam a seus lares com a sensação do dever cumprido, tive uma sutil
inspiração de exilado e viajei um poeminha, pois percebi que durante
todos esses anos eu continuei na janela, observando. O que eu observava? Nesse dia, uns pardais chilreavam despretensiosamente nos fios telegráficos, no jardim da firma em frente. Enquanto o vento soprava meu rosto, uma ideia vaga tomava forma de poesia.
Marcelino nada faz.
Marcelino nada espera.
Recebe o que o vento traz
E aceita o que o vento leva.
Profissão: observador de pardais.
Por serem os pardais uma espécie de vira-lata dos pássaros, pela aparente total despretensão do seu canto, pela sua vagabundagem explicita, que parece estar sempre em busca dos lírios do campo, pois não trabalham e nem fiam, pela humildade e deslumbramento (um pardal não exige muito seu lugar de residência, vive com a mesma desenvoltura na cidade ou no campo), pela impermeabilidade a gaiolas – um pouco pelo desprezo aos opressores - ,eu me senti afinado com esses pássaros.
Creio que assim explico o titulo deste livro, além de um pouco do meu oficio.
Obrigado.
Fevereiro, 1996
*Nota do editor: trinta anos, ao se considerar que publico esta crônica do Marcelino em 2016.
Marcelino Rodriguez é colunista sazonal do Blog Luiz Domingues 2. Trata-se de um escritor de vasta e consagrada obra.
Esta crônica, misturada com um soneto, é de seu primeiro livro, "O Observador de Pardais", lançado em 1996, e nessa reflexão, Marcelino nos fala de sua vocação, e a luta que trava desde a infância para se impor como autor de qualidade que o é, em um país que maltrata muito os seus artistas e intelectuais.
Lindo!
ResponderExcluirEssa frase é sensacional: "hoje em dia, o que falam de mim é tão importante quanto vômito de bêbado. "
Bem observado, Jani ! Também achei essa frase bastante emblemática.
ExcluirGrato por ler e comentar !!