domingo, 20 de agosto de 2017

A Solidão do Brasil - Por Marcelino Rodriguez

Januária só ficou sabendo a frase real da música de Luiz Melodia, Magrelinha, poucos dias depois de sua morte. Ela sempre entendia, na parte que diz “no coração do Brasil”,  como se fosse “na solidão do Brasil”. Agora no morro, enquanto descascava batatas, pensava nisso: "Que coisa estranha. Sempre entendi na solidão do Brasil.” Januária sempre gostava dos negros que faziam sucesso. Com Luiz Melodia, não era diferente. 
Januária lavava, passava e cuidava dos três netos, frutos da filha drogada e do genro assassinado. Sua adoração era o mais velho, Ramon, nove anos, que agora já vendia sorvete e ajudava um pouco. Mas havia muitos custos. Ficou devendo advogado para liberar a filha de boa. Precisava cortar coisas do orçamento.

Ela frequentava a igreja,  porque isso garantia uma cesta básica que era essencial para suas economias. Mas para ela, Januária, o mundo todo e tudo era Deus, não conseguia separar nada de nada. Era uma mística sem saber o real sentido dessa palavra. Sequer a ouvira ou lera. No morro, se tem poucas oportunidades de sair da senzala cultural.
Um vira-lata a observava pela fresta da porta de madeira, punha a língua de fora. Ela teve uma ideia de algo que poderia cortar do orçamento e imediatamente gritou ao neto, que lá fora brincava de bolinhas de gude.

- Ramon, Ramon.

O menino entrou correndo, sem se mostrar contrariado.

- O que foi vó?

-- Vai na igreja pegar o jornal. Vamos usar no banheiro.

 -- Tá bom – disse, e para lá foi saltitante. Ele ainda não sabia ler direito, faltava muito na escola precária; seu mundo era prático e as ordens da Vó jamais eram questionadas.

Sozinha de novo, Januária achava que ficava melhor mesmo se Melodia cantasse “a solidão do Brasil”. De forma primitiva, ela se orgulhava de se achar com alguma forma de talento. Estava contente: poderia substituir a despesa do papel higiênico pelos jornais da igreja. E assim ela, com sua competência simples,  ia criando os três netos. 
 
Marcelino Rodriguez é colunista ocasional do Blog Luiz Domingues 2. Escritor de vasta e consagrada obra, aqui oferece-nos uma crônica curta, mas de enorme contundência, para explicar o que é o Brasil, assim como o grande Luiz Melodia também fazia tão bem. 

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