Januária só ficou sabendo a frase real da
música de Luiz Melodia, Magrelinha, poucos dias depois de sua morte. Ela sempre
entendia, na parte que diz “no coração do Brasil”, como se fosse “na solidão do Brasil”. Agora no morro, enquanto descascava
batatas, pensava nisso: "Que coisa estranha. Sempre entendi na solidão do
Brasil.” Januária sempre gostava dos negros que faziam sucesso. Com Luiz
Melodia, não era diferente.
Januária
lavava, passava e cuidava dos três
netos, frutos da filha drogada e do genro assassinado. Sua adoração era o mais
velho, Ramon, nove anos, que agora já vendia sorvete e ajudava um pouco. Mas
havia muitos custos. Ficou devendo advogado para liberar a filha de boa.
Precisava cortar coisas do orçamento.
Ela frequentava a igreja, porque isso garantia uma cesta básica que era
essencial para suas economias. Mas para ela, Januária, o mundo todo e tudo era Deus, não conseguia
separar nada de nada. Era uma mística sem saber o real sentido dessa palavra.
Sequer a ouvira ou lera. No morro, se tem poucas oportunidades de sair da
senzala cultural.
Um vira-lata a observava pela fresta
da porta de madeira, punha a língua de fora. Ela teve uma ideia de algo que
poderia cortar do orçamento e imediatamente gritou ao neto, que lá fora
brincava de bolinhas de gude.
- Ramon, Ramon.
O menino entrou correndo, sem se
mostrar contrariado.
- O que foi vó?
--
Vai na igreja pegar o jornal. Vamos usar no banheiro.
-- Tá bom – disse, e para lá foi saltitante.
Ele ainda não sabia ler direito, faltava muito na escola precária; seu mundo
era prático e as ordens da Vó jamais eram questionadas.
Sozinha
de novo, Januária achava que ficava melhor mesmo se Melodia cantasse “a solidão
do Brasil”. De forma primitiva, ela se orgulhava de se achar com
alguma forma de talento. Estava contente: poderia substituir a despesa
do papel higiênico pelos jornais da igreja. E assim ela, com sua
competência simples, ia criando os três netos.
Marcelino Rodriguez é colunista ocasional do Blog Luiz Domingues 2. Escritor de vasta e consagrada obra, aqui oferece-nos uma crônica curta, mas de enorme contundência, para explicar o que é o Brasil, assim como o grande Luiz Melodia também fazia tão bem.
Gosto desse escrito.
ResponderExcluirTambém apreciei bastante. O Blog agradece !!
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