Se tudo é marcado pelo absoluto caos nos primeiros tempos de vida, qual seria a
imagem mais remota que conseguimos guardar na memória?
Obviamente que isso é
muito relativo e partamos então do pressuposto que não há uma linearidade entre
os seres humanos, portanto, de imediato é preciso descartar um bom contingente
que simplesmente não conseguiu armazenar absolutamente nenhuma lembrança com
uma mínima clareza e claro que isso é absolutamente normal, sob o ponto de vista
de que não se lembrar de nada neste período incipiente da existência humana, não é um demérito para ninguém.
Outro ponto para ser considerado, é que entre os
que conseguem manter uma lembrança, nem todos no entanto, carregam-na
eternamente, mas tendem a perdê-las, muitas vezes por conta de um certo
desleixo para consigo mesmo, digamos assim, ao não dar importância da prerrogativa de preservar
a sua própria experiência.
E finalmente, há aquele tipo de pessoa que consegue
guardar lembranças, mesmo que sejam poucas e dessa forma, fica apta a estabelecer
um elo com o início do seu desenvolvimento cognitivo, mediante as primeiras
sinapses e sobretudo, no tocante aos primeiros sinais de consciência sobre a vida e o mundo.
Eu
faço parte desse terceiro grupamento, aliás, pela obviedade da existência deste
livro, que é uma reflexão livre, com uma dose de poesia, certamente, sobre
as lembranças reais da primeira infância em confronto com a minha própria análise sob o ponto de vista
adulto.
Ao falar então sobre a mais remota visão, eu guardo duas, ambas curiosamente
bem divididas entre as duas pessoas mais primordiais diretamente pela minha
existência: papai e mamãe.
Com a minha mãe, lembro-me em ter estado no seu colo e
ela em pé a segurar as minhas mãos que insistiam em tocar no seu rosto, com o intuito
da livre exploração tátil, sem que eu entendesse absolutamente nada sobre a situação, logicamente.
A
sensação fora apenas no sentido de agir por impulso e freneticamente a mexer braços e
pernas a esmo como algo incontrolável. Não entender sequer o que eu era, tampouco o que seria aquele Ser enorme que
controlava-me em meus impulsos espasmódicos, foi apenas confuso, não assustador, isso eu posso
garantir como algo que ficou gravado na minha mente.
Tanto foi assim, que houve uma clara
sensação boa que transmitira-me a sensação de segurança de estar sob a mercê daquela criatura enorme
em relação ao meu próprio e minúsculo Ser. Lembro-me que havia uma ambientação
clara e brilhante e ao analisar hoje em dia, deduzo ter sido a cozinha da nossa
residência e a tal percepção do branco brilhante a envolver-nos, provavelmente
tratou-se do reflexo de uma luz acesa a incidir sobre os azulejos brancos. E
também creio ter sido a cozinha, pela dimensão do ambiente, visto que no caso, se apresentava como um cômodo mais
amplo que os banheiros da habitação.
A outra imagem mais remota que eu guardo conscientemente, é semelhante
pela ação, mas eu desconfio seriamente que seja ainda mais antiga, portanto, é provavelmente a
mais remota que eu tenha na memória.
Isso por que a minha lembrança dá conta sobre uma
estranha sensação de imobilidade e não que eu estivesse preso por alguma roupa
especial e neste caso, eu sou de uma geração que fora criado a ter um
excesso de zelo de parte da minha mãe e principalmente das avós, com
mentalidade ainda mais antiga, naturalmente.
No entanto, neste caso, os meus
braços estavam livres e eu usava uma roupa típica para recém-nascidos a parecer
um mini macacão ou coisa que o valha.
Lembro-me então que apesar de estar
aparentemente livre, a minha energia foi mais diminuta em comparação à
lembrança que eu descrevi anteriormente e há um dado que eu reputo ser ainda mais
interessante: a minha percepção de tudo, a mostrar-se ainda menor, e posso
afirmar, praticamente nula. Mesmo assim, recordo-me da sensação muito estranha
de ter sido tirado do berço, por uma criatura que pareceu-me enorme e mesmo ao não ter a mínima
ideia do que fosse a anatomia humana, o fato daquela criatura segurar-me e
interagir comigo, não foi assustador, mas apenas estranho.
Lembro-me daquela
cabeça enorme, a conter um estranho objeto na sua parte mais alta e hoje eu
sei, eram os óculos do meu pai. O cabelo preto cheio de brilhantina e aqueles
estranhos sons que emitia e a mostrar-me os dentes, também não foram assustadores
e posso afirmar, senti uma empatia, como se absorvesse a energia daquela intenção
amorosa de sua parte e certamente que deve ele ter falado ou balbuciado palavras em
tom infantil, como brincadeira para agradar-me e sorria, concomitantemente.
O
ambiente ao nosso redor se mostrara diferente, haviam mais partes escuras (os móveis) e recordo-me bem
da pintura branca da parede, com detalhes em marrom claro, ou como dizia-se nos
anos cinquenta, “café com leite”. Portanto, não tenho como determinar a
exatidão das datas, mas tenho o forte indício que a minha lembrança mais remota
foi com a figura do meu pai, em uma das salas de estar da nossa residência,
visto que haviam duas, ali.
Tenho duas impressões a registrar: a primeira, é que o nível de
percepção do bebê, muda em uma questão de muito pouco tempo. Essas duas memórias
que eu descrevi, não tem muito mais que alguns meses entre uma ocorrência e outra,
então, é impressionante como a cognição desenvolve-se.
E segunda percepção:
mesmo sob intenso torpor mental, o bebê absorve a energia e consegue sentir se
a carga é positiva ou negativa.
No meu caso em específico, eu tive sorte, pois nasci em um Lar amoroso, mas muitos
não tem esse ambiente favorável para começar a viver e certamente que a carga negativa os
atinge em cheio, mesmo sem nenhum raciocínio formal ao seu dispor e é claro
que tal influência nefasta, trata por lhes causar danos psíquicos e
neurológicos.
E por último, e considero que seja a chave mestra deste estudo em forma lúdica, mas que eu reforço: lembrar
dos detalhes mais primordiais da existência, é uma forma de autoanálise muito
importante, pois explica muita coisa ao seu respeito.