sábado, 20 de abril de 2019

Crônicas da Autobiografia - Incensos Versus Esgoto - Por Luiz Domingues

                  Aconteceu no tempo do Sidharta, em 1998       
 
Queríamos evocar o sonho hippie na concepção do Sidharta, não apenas como inspiração e fonte primordial para a criação de nossas composições, mas também sob múltiplos aspectos, alguns deles bem sutis, mas em nossa visão seria algo importante para gerarmos a atmosfera adequada para que esse trabalho fluísse a contento de nossos ideais. 
 
Um exemplo desse esforço obstinado para buscar tal ambientação que desejávamos, deu-se pelo fato de que usávamos muitos incensos para perfumar as salas de ensaios que usávamos para trabalhar. Ao longo da história dessa banda, fizemos uso de quatro salas e uma delas, foi a que mais usamos, a caracterizar uma temporada maior em suas dependências. 
 
Por ter como seu proprietário um músico que simpatizava com muitos valores parecidos com os nossos, tal sala mantinha uma certa aura freak sessentista, embora esse músico fosse um egresso de uma banda que fora mega popular nos anos oitenta e apesar dele, pessoalmente, possuir uma influência sessenta-setentista primordial em sua formação pessoal, a sua banda fora regida pelos valores oitentistas antagônicos, versados pela cartilha do movimento Pós-Punk. 
 
Independente desse aspecto, o tal artista era uma pessoa boa, que sempre tratou-nos muito bem e além disso, o seu estúdio parecia uma caverna hippie, o que foi acolhedor para o tipo de vibração que desejávamos ter para trabalhar em nossa criação.
Dessa forma, fomos autorizados a usar incensos à vontade em suas dependências e mais que isso, ele pedia-nos varetas para acender em sua residência em anexo. Ora, que vibração boa, tocávamos com o perfume sessentista no ar.
 
No entanto, essa prática que foi um prazer aromático e ao mesmo tempo uma autoafirmação de nossos propósitos enquanto artistas comprometidos com as tradições contraculturais mais puras, tornou-se com o decorrer do tempo, uma necessidade mais que premente. 
Pois o rapaz em questão, em princípio tinha três cães, mas logo tal número subiu, ao tornar-se uma verdadeira matilha em sua residência e dessa forma, com onze cães da raça Sheep Dog, a urinarem e defecarem constantemente pelos corredores e até dentro do próprio estúdio que alugava-nos, o fato foi que o advento do incenso tornou-se a nossa única forma para ensaiarmos com um mínimo de preservação de nossa dignidade, em termos olfativos. 
 
Entretanto, tudo piorou quando um dia chegamos ao estúdio munidos da nossa tradicional caixa com incensos e percebemos que mesmo ao caracterizar uma enorme quantidade de varetas disponíveis que tínhamos à disposição, tal montante não daria conta, simplesmente por um fato novo ali instaurado: um caminhão da Sabesp, a companhia paulista de água e esgoto estava estacionada na porta da residência/estúdio desse nosso amigo e os seus funcionários trabalhavam a todo vapor, e que o leitor entenda a palavra “vapor” pelo duplo sentido, visto que o odor horroroso que ali instaurara-se, mostrou-se impressionante. 
 
Mexiam tais trabalhadores, justamente nos encanamentos do esgoto da calçada e com uma extensão quase até a porta do estúdio, na edícula da residência. 

Bem, diante de tal quadro insalubre, nós gastamos todo o nosso arsenal de incensos e o melhor resultado que alcançamos nesse sentido, foi apenas adocicar o odor exalado pelos encanamentos expostos a céu aberto, que mostrara-se indescritível em seu caráter insalubre. 

Todos nós já havíamos ouvido falar sobre a podridão das vísceras humanas sob termos hipotéticos, mas naquele instante, tal expressão ganhou uma conotação mais realista, digamos assim. 

Ainda bem que tínhamos entre as nossas composições, uma canção chamada: “Tudo Vai Mudar”, pois eis que serviu-nos como um alento naquelas duas horas em que nem se queimássemos o dobro de incensos disponíveis, conseguiríamos amenizar aquela fétida situação.

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