terça-feira, 23 de abril de 2019

As Lembranças mais Remotas na Memória - Por Luiz Domingues


Se tudo é marcado pelo absoluto caos nos primeiros tempos de vida, qual seria a imagem mais remota que conseguimos guardar na memória? 
 
Obviamente que isso é muito relativo e partamos então do pressuposto que não há uma linearidade entre os seres humanos, portanto, de imediato é preciso descartar um bom contingente que simplesmente não conseguiu armazenar absolutamente nenhuma lembrança com uma mínima clareza e claro que isso é absolutamente normal, sob o ponto de vista de que não se lembrar de nada neste período incipiente da existência humana, não é um demérito para ninguém. 
 
Outro ponto para ser considerado, é que entre os que conseguem manter uma lembrança, nem todos no entanto, carregam-na eternamente, mas tendem a perdê-las, muitas vezes por conta de um certo desleixo para consigo mesmo, digamos assim, ao não dar importância da prerrogativa de preservar a sua própria experiência. 
 
E finalmente, há aquele tipo de pessoa que consegue guardar lembranças, mesmo que sejam poucas e dessa forma, fica apta a estabelecer um elo com o início do seu desenvolvimento cognitivo, mediante as primeiras sinapses e sobretudo, no tocante aos primeiros sinais de consciência sobre a vida e o mundo. 
 
Eu faço parte desse terceiro grupamento, aliás, pela obviedade da existência deste livro, que é uma reflexão livre, com uma dose de poesia, certamente, sobre as lembranças reais da primeira infância em confronto com a minha própria análise sob o ponto de vista adulto. 
Ao falar então sobre a mais remota visão, eu guardo duas, ambas curiosamente bem divididas entre as duas pessoas mais primordiais diretamente pela minha existência: papai e mamãe. 
 
Com a minha mãe, lembro-me em ter estado no seu colo e ela em pé a segurar as minhas mãos que insistiam em tocar no seu rosto, com o intuito da livre exploração tátil, sem que eu entendesse absolutamente nada sobre a situação, logicamente. 
 
A sensação fora apenas no sentido de agir por impulso e freneticamente a mexer braços e pernas a esmo como algo incontrolável. Não entender sequer o que eu era, tampouco o que seria aquele Ser enorme que controlava-me em meus impulsos espasmódicos, foi apenas confuso, não assustador, isso eu posso garantir como algo que ficou gravado na minha mente. 
 
Tanto foi assim, que houve uma clara sensação boa que transmitira-me a sensação de segurança de estar sob a mercê daquela criatura enorme em relação ao meu próprio e minúsculo Ser. Lembro-me que havia uma ambientação clara e brilhante e ao analisar hoje em dia, deduzo ter sido a cozinha da nossa residência e a tal percepção do branco brilhante a envolver-nos, provavelmente tratou-se do reflexo de uma luz acesa a incidir sobre os azulejos brancos. E também creio ter sido a cozinha, pela dimensão do ambiente, visto que no caso, se apresentava como um cômodo mais amplo que os banheiros da habitação.
A outra imagem mais remota que eu guardo conscientemente, é semelhante pela ação, mas eu desconfio seriamente que seja ainda mais antiga, portanto, é provavelmente a mais remota que eu tenha na memória. 
 
Isso por que a minha lembrança dá conta sobre uma estranha sensação de imobilidade e não que eu estivesse preso por alguma roupa especial e neste caso, eu sou de uma geração que fora criado a ter um excesso de zelo de parte da minha mãe e principalmente das avós, com mentalidade ainda mais antiga, naturalmente. 
 
No entanto, neste caso, os meus braços estavam livres e eu usava uma roupa típica para recém-nascidos a parecer um mini macacão ou coisa que o valha. 
 
Lembro-me então que apesar de estar aparentemente livre, a minha energia foi mais diminuta em comparação à lembrança que eu descrevi anteriormente e há um dado que eu reputo ser ainda mais interessante: a minha percepção de tudo, a mostrar-se ainda menor, e posso afirmar, praticamente nula. Mesmo assim, recordo-me da sensação muito estranha de ter sido tirado do berço, por uma criatura que pareceu-me enorme e mesmo ao não ter a mínima ideia do que fosse a anatomia humana, o fato daquela criatura segurar-me e interagir comigo, não foi assustador, mas apenas estranho. 
 
Lembro-me daquela cabeça enorme, a conter um estranho objeto na sua parte mais alta e hoje eu sei, eram os óculos do meu pai. O cabelo preto cheio de brilhantina e aqueles estranhos sons que emitia e a mostrar-me os dentes, também não foram assustadores e posso afirmar, senti uma empatia, como se absorvesse a energia daquela intenção amorosa de sua parte e certamente que deve ele ter falado ou balbuciado palavras em tom infantil, como brincadeira para agradar-me e sorria, concomitantemente. 
 
O ambiente ao nosso redor se mostrara diferente, haviam mais partes escuras (os móveis) e recordo-me bem da pintura branca da parede, com detalhes em marrom claro, ou como dizia-se nos anos cinquenta, “café com leite”. Portanto, não tenho como determinar a exatidão das datas, mas tenho o forte indício que a minha lembrança mais remota foi com a figura do meu pai, em uma das salas de estar da nossa residência, visto que haviam duas, ali.
Tenho duas impressões a registrar: a primeira, é que o nível de percepção do bebê, muda em uma questão de muito pouco tempo. Essas duas memórias que eu descrevi, não tem muito mais que alguns meses entre uma ocorrência e outra, então, é impressionante como a cognição desenvolve-se. 
 
E segunda percepção: mesmo sob intenso torpor mental, o bebê absorve a energia e consegue sentir se a carga é positiva ou negativa. 
 
No meu caso em específico, eu tive sorte, pois nasci em um Lar amoroso, mas muitos não tem esse ambiente favorável para começar a viver e certamente que a carga negativa os atinge em cheio, mesmo sem nenhum raciocínio formal ao seu dispor e é claro que tal influência nefasta, trata por lhes causar danos psíquicos e neurológicos. 
 
E por último, e considero que seja a chave mestra deste estudo em forma lúdica, mas que eu reforço: lembrar dos detalhes mais primordiais da existência, é uma forma de autoanálise muito importante, pois explica muita coisa ao seu respeito.

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