segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Crônicas da Autobiografia - Maratonas de Rock Inesquecíveis - Por Luiz Domingues

Aconteceu no preâmbulo e durante a trajetória do Boca do Céu, portanto, entre 1974 e 1979

Um show de Rock continha uma outra conotação nas décadas de 1960 e 1970, desse fator não há dúvida. A música ultrapassara todas as fronteiras e se colocava na linha de frente da contracultura, portanto, todos os signos inerentes se faziam presentes com enorme contundência, a caracterizar um conjunto de fatores que apontavam para a perspectiva de se quebrar paradigmas de toda a ordem.

Por conseguinte, tal fator desencadeador gerou condições propícias para a construção de um mundo mais fraterno, ao menos em tese, e sobretudo em nossos sonhos mais utópicos, porém humanistas e bem longe da barbárie gerada pelo egoísmo desenfreado em prol do capitalismo selvagem. Daí a provocar a euforia que foi observada principalmente na década de sessenta, foi uma consequência bem natural.

Enfim, o show de Rock não era apenas um recital de música, mas envolvia uma série de outros fatores de outras motivações a se observar aspectos sensoriais, intelectuais e sobretudo a conter implícito o sentimento de comprometimento mútuo com a mesma causa.

Tal sentimento de pertencimento a um ideal maior, norteou os shows de Rock ocorridos nessas décadas. Aliás, para espelhar bem o que representou, digo que uma vez um grande guitarrista que eu conheci bem no final da década de setenta e com o qual eu tive o prazer de tocar por um breve período (Fernando “Mu”, guitarrista da banda cover, “Terra no Asfalto”, pela qual atuamos juntos), me falou certa vez com ar de melancolia, já a pressentir que o panorama estava a mudar drasticamente no início de 1980, quando afirmou isso: -“o meu sonho sempre foi tocar para aquela plateia imensa de freaks, dentro daquela perspectiva de que todos, do palco à audiência, éramos buscadores do mesmo sonho”, mas pelo jeito essa realidade não existe mais”. Em suma, o saudoso e talentosíssimo “Mu”, resumiu bem o que tínhamos e perdemos, infelizmente.

E por falar em shows de Rock com tal carga de valores extra-musicais implícitos, eu tive o prazer de absorver ao menos o fim dessa "Era" e assim, essa foi a minha rotina ao frequentar tais espetáculos, desde um pouco antes da formação do Boca do Céu (a minha primeira banda), e por conseguinte, foi algo muito marcante durante a trajetória dessa banda, no sentido de que eu e meus colegas do grupo fomos juntos a inúmeros shows de Rock dessa natureza e mais do que o prazer pela empreitada, considerávamos tais oportunidades como uma espécie de curso intensivo e importante para a nossa própria formação, a se considerar que éramos aspirantes a artistas.

Nesses termos, além dos shows individuais protagonizados por diversos bandas em teatros e espaços culturais os mais diversos, aconteciam também os shows compartilhados com duas ou mais atrações no mesmo espetáculo e mais que isso, houve em profusão entre 1974 e 1977, principalmente, de muitos festivais e também a contar com as ditas “maratonas” que vinham a ser shows múltiplos com várias bandas, todos com curta duração (o que no meio artístico é também conhecido como: “show de choque”), e realizados sobretudo em ginásios de esportes de grandes clubes da cidade de São Paulo. 

Diferentemente da dinâmica dos festivais de longa duração ao ar livre, nos quais as bandas tocam primordialmente, cada uma delas, o seu show na íntegra, como se fosse um espetáculo individual feito em teatro, nas maratonas, a ideia era ter sim, muitas atrações como chamariz de público, mas obrigatoriamente com pouco espaço de tempo para cada uma delas poder usar, ou seja, a se revelar como os tais shows de choque, com uma duração entre 15 a 30 minutos apenas, a depender de cada circunstância que se fazia premente.

Dentro desse parâmetro, não foram poucas as maratonas que eu tive o prazer de assistir, em ginásios de esportes de clubes esportivos famosos e populares pela mobilização do futebol, como o Palmeiras, Corinthians e Portuguesa e outros sem essa mesma tradição com esporte profissional de massa, mas importantes na cidade, como o Ginásio do Ibirapuera, pertencente ao governo estadual e Clubes Pinheiros e Paineiras, por exemplo.

Como atrações, havia um grupo de bandas e artistas solo que se revelaram como recorrentes e hoje eu sei que muitos deles tinham o mesmo empresário envolvido com os organizadores dessas maratonas, mas tudo bem, tal tipo de artimanha empresarial faz parte do jogo de bastidores do show business e não se trata de algo ilícito.

E assim, foi comum assistirmos muitas apresentações dos Mutantes, O Terço, Som Nosso de Cada Dia, Rita Lee & Tutti-Frutti, Made in Brazil, Joelho de Porco, Novos Baianos, Sindicato, Casa das Máquinas, Patrulha do Espaço e Humahuaca, principalmente, como uma espécie de turma fixa, mas haviam outros tantos grupos que não participavam de todas, mas de algumas, casos do Papa Poluição, Apokalypsis do Zé Brasil & Silvia Helena, Cornélius & Santa Fé, Pholhas, O Peso, Vímana, A Bolha, Bixo (com x mesmo) da Seda, A Chave, Terreno Baldio, Odair Cabeça de Poeta & Grupo Capote, Placa Luminosa, Bendengó, Flying Banana, Flamboyant, Veludo, Burmah, Neblina, Bagga’s Guru e outras.

E mais uma marca indelével: diversos artistas mais identificados com a cena MPB a participarem e leve-se em conta que a MPB vivera uma fase que vinha desde o final dos anos sessenta, com forte aproximação com o Rock e também com a Black Music, portanto, foi comum vermos artistas dessa vertente a se apresentarem e serem muito apreciados, casos de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Walter Franco, Jards Macalé, Jorge Mautner, Belchior, Ednardo, Alceu Valença, Geraldo Azevedo e até artistas ligados à música instrumental, com viés jazzistico, casos de Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti e Cesar Camargo Mariano (que além do trabalho de acompanhar a grande cantora, Elis Regina, montara uma banda para praticar Jazz-Rock instrumental e quase a flertar com o Rock Progressivo e assim, tal tecladista apareceu em algumas maratonas e foi bem apreciado pelos Rockers e não poderia ser de outra forma, dada a sua excelência musical).  

Pelo aspecto lúdico de tais maratonas, eu não posso deixar de observar o quanto foi mágica a atmosfera na porta de tais ginásios em que elas transcorreram. Havia fortemente no ar aquele sentimento de união que permeava a todos, a denotar compartilhamento de um mesmo sonho, a tornar tal convívio como algo que foi verdadeiramente incrível.

E claro, a expectativa pelo “Concerto de Rock” que cada banda faria naquelas noitadas memoráveis foi um sentimento a mais nesse caldeirão de emoções. Adorávamos todas em suas diferentes propostas artísticas e mediante as suas particularidades, muito ricas por sinal.

Que prazer então era assistir Os Mutantes a tocar as suas longas suítes progressivas tão esvoaçantes, O Terço a desfilar o seu Prog-Folk-Rock, a explosão brasileira percussiva dos Novos Baianos, a ironia fina do Joelho do Porco, Rita Lee em seus melhores dias e a bordo de uma super-banda de Rock (Tutti-Frutti), o som progressivo cerebral e dançante ao mesmo tempo do grande Som Nosso de Cada Dia, a festa da Casa das Máquinas e o Rock básico e super fiel aos princípios, praticado pelo Made in Brazil, entre outras tantas atrações.

Lembro-me muito bem daquela sensação de euforia que era entrar nos locais e observar o palco montado. Aquela predisposição clássica do Rock setentista em termos de haver uma quantidade enorme de amplificadores a configurar uma muralha toda perfilada atrás da linha da bateria e esta, por sua vez, a se manter sobre um enorme praticável e a se revelar enorme mediante uma incrível quantidade de peças e pratos reluzentes aos efeitos da iluminação. E a não menos impressionante montanha de teclados bem ao sabor setentista. 

Hoje em dia o músico leva em conta a praticidade e geralmente toca com um teclado único que é todo computadorizado e contém “presets” com diversos tipos de teclados de ordem “vintage” mediante uma infinidades de timbres disponíveis em um "software" para prover todas as necessidades de uma banda, mas naquele tempo, para poder contar com essa diversidade sonora, só era possível ao tecladista fazer uso dessa diversidade sonora se montasse um teclado ao lado do outro e muitos amontoados uns sobre os outros para facilitar o malabarismo que tais instrumentistas faziam para tocar vários deles, simultaneamente. Falta de praticidade a parte, como era lindo ver aquela armação toda da "tecladeira".

E a iluminação? Que obra de arte a mais a ornar um genuíno Concerto de Rock! E nesse quesito visual, é preciso destacar que muitas bandas usavam bastante o recurso do gelo seco para criar atmosferas glaciais incríveis no palco. Não há nada mais setentista que o efeito do gelo seco, que eu sei que era arcaico e desagradável para ser produzido nos bastidores, no entanto, o efeito visual que era gerado ao público, se mostrava inigualável, posso atestar.

No mais, a pensar exclusivamente como espectador e muitos anos antes de passar a fazer shows de Rock e conhecer todos os meandros de uma produção (portanto, a perder particularmente bastante o glamour idealizado que eu mantinha de outrora), digo que na minha memória como adolescente e aspirante a Rocker, lembro-me da excitação que havia pelo início do espetáculo.

Sei que é uma tendência humana normal para qualquer tipo de situação e não se trata de uma exclusividade de um show de Rock, mas devo salientar que aquela expectativa pelo início do show era um momento extremamente interessante em termos de foco de atenção coletivo, ao ponto de qualquer pequeno falso alarme gerar uma catarse incontrolável.

Por exemplo, se um roadie que fosse instruído a falar: “ei” em um microfone qualquer do palco para o técnico checar se ele estava a funcionar, motivado por uma dúvida surgida de última hora (tal teste de última hora era/é algo comum nos bastidores de qualquer produção, assim como um spot de luz acendido), no entanto, bastava um sinal desses para inflamar a plateia, que era impelida a deduzir que o show começaria, mas pelo contrário, não se tratava disso exatamente naquele breve instante.

E quando começava enfim a apresentação, aquela explosão de som, luz e movimentação dos artistas no palco, em pleno exercício da sua misè-en-scene, se configurava como um irresistível “tour de force” a denotar uma dose cavalar de estímulos múltiplos, ou seja, a configurar toda a síntese do que o Rock representava para todos nós.

Amizades se forjaram naqueles ginásios esportivos, hall de entrada de teatros, filas para comprar ingressos ou para adentrar os ambientes. Muitas vezes, víamos amigos e outras pessoas que identificávamos visualmente apenas, presentes em outros ambientes, mas análogos aos shows de Rock, tais como salas de cinema de arte, peças teatrais com algum viés contracultural, palestras de filósofos e gurus indianos, galeria de arte, exposições e bibliotecas, ou seja, a amálgama contracultural nos impulsionava a estarmos atraídos pelos mesmos interesses, mesmo que não fosse um show de Rock propriamente dito, porque a nossa fome de cultura embasada pela nossa imersão na contracultura, nos impelia a buscar o máximo de informações.

E o aroma de patchouly a pairar no ar...sim, nove a cada dez “freaks” usavam o mesmo perfume e era encantador nos identificarmos também por tal sinal tão sutil. E mais incisivo ainda, era comum nos cumprimentarmos com o gestual típico dos dois dedos a sinalizar a saudação hippie de “paz & amor”, ou seja, mesmo que tenha chegado com grande atraso, o movimento hippie ecoou no Brasil, mesmo quando vivíamos uma ditadura a impor valores diametralmente opostos e nesse sentido, nos deu ao menos um tempo ínfimo para que sonhássemos.

Ao final das maratonas, claro que muitos abusavam dos efeitos do álcool e de drogas em geral e simplesmente ficavam tão fora de órbita que simplesmente perdiam grande parte dos espetáculos, deitados, ou melhor desacordados pelos cantos das arenas, mas definitivamente esse nunca foi o meu caso, pois eu aproveitava cada segundo daquela experiência sensorial total.

E ainda guardo na memória as pequenas lembranças de ocorrências ocorridas em maratonas: 

1) Baby Consuelo em estado de gravidez avançada e a dançar alucinadamente no palco sempre a usar um vestido curtíssimo.

2) Sérgio Dias a tocar cítara em meio às “Brumas de Avalon” graças ao gelo seco.

3) Tico Terpins a usar e abusar do deboche e sarcasmo.

4) Os irmãos Vecchione a comandar o Rock in natura e sem concessões, Rita Lee a desfilar a sua cilibrina do theremin sob o som da sua super banda, o Tutti-Frutti.

5) O sexteto do Papa Poluição a entrar no palco cantando a capella, da portaria do teatro, surpreendendo a plateia vindo pelas suas costas em direção ao palco. 

6) Jards Macalé a cometer experimentalismo misturado com samba em shows de Rock sob intenso nonsense e enorme criatividade.

6) Walter Franco a nos falar sobre poesia concreta e meditação transcendental tudo ao mesmo tempo.

7) O profeta Jorge Mautner a discursar sobre o conceito do “Kaos” com “K” e tocar violino (lembro-me dele a parar para afinar o instrumento certa vez e alguém da plateia brincar com ele: -“ toca Stravinsky”, o que lhe despertou uma sonora gargalhada...

Era impossível não dançar ao som da Casa das Máquinas, voar com Pedrão & Pedrinho a bordo do sensacional Som Nosso de Cada Dia e não apreciar a docilidade folk do Bendengó e do Flying Banana.

Como não se empolgar com o Rock Progressivo ultra técnico do Terreno Baldio? A alcunha de ser supostamente o “Gentle Giant brasileiro” lhe caia bem, certamente, assim como o som viajante do Veludo nos fazia voar e o Apokalypsis do Zé Brasil, idem. A Barca do Sol e o Recordando o Vale das Maçãs com o seu som Folk-Rock a la Gryphon ou Fairport Convention, digamos assim e que bonito que faziam.

O Papa Poluição a nos mostrar a fusão do Rock paulistano via Beatles, ritmos nordestinos e a poesia folk/psicodélica das canções de Belchior, das quais eram parceiros, foi inesquecível

A Cor do Som em seu início de trajetória fora do âmbito dos Novos Baianos, com aquela estética do “Chorinho” oriundo da velha guarda do Samba, via Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga, mas devidamente vestido com a roupagem do Jazz-Rock super eletrificado, nos encantara e por muitas vezes nós vibramos com a sua música de alta precisão.  

Algumas bandas fora do eixo Rio-São Paulo que eu já citei, tocavam ocasionalmente, mas muitas simplesmente não vieram à capital paulista por conta da logística complicada, cachês não condizentes com as necessidades etc. 

Não me recordo da presença do Ave Sangria, e se veio, eu perdi, infelizmente. Assim como o maravilhoso, Som Imaginário. 

Não me lembro das presenças dos mineiros do Clube da Esquina a se apresentarem juntos, a não ser shows solo de Milton Nascimento e Beto Guedes que eu tive o prazer de ver, e o super trio, Secos & Molhados já havia encerrado atividades, uma grande lástima e eu não os vi em ação, lamento muito. 

Não me recordo de Sá, Rodrix & Guarabyra, mas Zé Rodrix em show solo chegou a acontecer (mas eu não vi, perdi e lastimo). 

Todavia, tive o prazer de ver Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti com o seu som instrumental muito mais para o Jazz, entretanto sem gerar nenhuma controvérsia e muito pelo contrário, sendo muito aplaudidos pelos Rockers. 

Enfim, citei alguns exemplos apenas, porém, creio que o leitor absorveu bem o quanto foi impactante ter presenciado as maratonas de Rock setentistas que acompanhei com muito entusiasmo em diversos endereços paulistanos. Dessa forma, posso afirmar que foi mais um fator vital para motivar a minha entrada no mundo da música e que contribuiu demais para a minha formação cultural.

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