sábado, 18 de junho de 2022

Crônicas da Autobiografia - Zé do Caixão do Rock - Por Luiz Domingues

        Aconteceu no tempo d'A Chave do Sol, entre 1982 e 1983

Quando A Chave do Sol iniciou as suas atividades, por volta de meados de julho de 1982 (consideramos a data de 25 de setembro como da fundação oficial por ter sido o dia do primeiro show, mas na verdade, os primeiros esforços para montar a banda se iniciaram na segunda quinzena de julho), foi um tempo também difícil na minha vida particular, pois na prática, a minha banda cover que me provia renda, o “Terra no Asfalto”, já havia encerrado atividades, os trabalhos avulsos que eu fizera até então também estavam a rarear e a própria, A Chave do Sol, somente sinalizaria começar a render dividendos em termos de cachês, algum tempo depois e de fato isso veio a ocorrer em dezembro desse mesmo ano, porém, a se refletir de uma forma módica, condizente com a dura labuta de se construir uma banda de Rock autoral e sem nenhum esquema empresarial por trás, ou seja, demorou para eu poder ter uma folga no meu apertado cinto financeiro.

Como consequência desse momento de penúria financeira, eis que precisava me deslocar constantemente a fazer uso do transporte público. Isso nunca me incomodou e pelo contrário, mesmo quando eu pude comprar um carro particular, sempre gostei mais de usar o serviço do metrô do que dirigir e ainda penso assim.

No entanto, por ter que carregar o meu instrumento para os compromissos e a se tratar de um instrumento importado em um tempo no qual a importação estava proibida no Brasil e daí ser muito mais caro do que o normal, e também por ser o meu único instrumento na ocasião, é claro que me preocupava muito em carrega-lo pelas ruas, a correr o risco permanente de ser assaltado e ficar doravante sem meios para trabalhar, pois é evidente que se tratava da minha ferramenta primordial e pior, única na ocasião.

Mas não foi apenas o medo que me atormentara nesses tempos mais difíceis. O fato de eu não possuir na época um “bag” ao estilo de uma mochila para se carregar o instrumento nas costas, me obrigava a usar o “case” (estojo), clássico original da Fender, ou seja, a se tratar de um caixote retangular, pesado, difícil de se carregar pela mobilidade e aerodinâmica do artefato em si.

Isso por que se carregado pela alça, como se fosse uma maleta, por conta de ser retangular e enorme, gerava o desconforto de provocar o desequilíbrio constante ao seu condutor. Se fosse carregado em pequenas distâncias, tudo bem, mas para se caminhar na rua, a desviar de pessoas, atravessar ruas e avenidas e a conduzi-lo para o metrô ou ônibus, e ter que passar por catracas, era extremamente dificultada a sua operação de manuseio.

E um dado a mais: chamava em demasia a atenção. Em um ambiente musical, tudo bem, os colegas olhavam e sabiam se tratar de um estojo clássico para um baixo Fender, contudo, pelas ruas e a passar por leigos nesse universo, aquele enorme objeto gerava uma profunda estranheza. 

Eu já estava acostumado a chamar a atenção negativamente no âmbito social desde os anos setenta por conta da minha aparência ao estilo Rocker/Hippie sessenta-setentista, pelas vestimentas e sobretudo pelo uso de uma cabeleira longa, mas ali na ambientação de início da década de oitenta, além da habitual estranheza gerada entre diversas pessoas sem nenhuma afinidade com as tradições do Rock, eu passei também a enfrentar a animosidade das tribos oitentistas hostis a esse tradicionalismo, sedentas pelas provocações, escárnio e até ameaça de agressão da parte dos intolerantes que passaram a odiar e perseguir os hippies setentistas que haviam sobrado pelas ruas. E assim, foram muitas as histórias desagradáveis, algumas inclusive já narradas em outras crônicas já publicadas.

Mas nesta crônica eu quero contar a história curiosa de um balconista de um bar que ficava localizado bem perto da esquina da rua Tuiuti com a Avenida Celso Garcia, no bairro do Tatuapé, na zona leste de São Paulo. 

Eu precisava passar por ali todo dia para me dirigir à estação do metrô mais próxima da minha residência, três quarteirões adiante e muitas vezes a carregar o pesado “case” do baixo Fender, e ante tal rotina, o sujeito quando me via, sempre demonstrava no semblante que achava a minha persona como alguém absolutamente anormal para os seus padrões de entendimento cultural.

Até aí, tudo bem, eu não me surpreendia com tal tipo de reação e pela sua feição, já antevi desde a primeira vez que seria uma questão de tempo para o sujeito ir além da expressão facial de espanto e não satisfeito, partir para algum tipo de gracejo verbal e certamente para um tipo de pessoa como ele, sem muito recurso educacional e cultural, seria certamente algum tipo de escárnio bem típico com conotação sexual ao associar o comprimento do meu cabelo à feminilidade não coadunada com a minha condição masculina, bem ao estilo do humor grotesco dos programas popularescos da TV, algo como: “-olha a cabeleira do Zezé, será que ele é?” Ou outra colocação desse baixo nível.

Mas eis que um dia eu passei pela porta daquele bar bem encardido de quinta categoria e foi então que o sujeito criou coragem e gritou: -“olha o Zé do Caixão!”   

Por esse tipo de gracejo eu realmente não esperava, mas claro que entendi de imediato que o sujeito associara o meu estojo de instrumento a um caixão de defunto e certamente que o meu visual, por conseguinte, o remetera à figura do personagem: “Zé do Caixão”, imortalizado pelo genial diretor de cinema e ator, José Mojica Marins.

E assim se sucedeu, pelo menos entre 1982 e 1983, que eu passei por ali a caminho do metrô, diariamente para ensaiar ou cumprir compromissos com A Chave do Sol.

Nem sempre eu estive com o “case” em mãos, é bem verdade, pois quando a banda passou a contar com um local fixo de ensaios, montado em um quarto na edícula da residência da família Gióia, o meu instrumento mais permaneceu guardado em nossa sala de ensaios permanente. 

Entretanto, ainda assim, pela força de diferentes circunstâncias, muitas vezes eu tive que levá-lo para a minha casa e reconduzi-lo ao ensaio a posteriori, e assim, se tornou uma rotina passar na porta desse malfadado bar e o balconista galhofeiro falar em voz alta aos seus clientes que o “Zé do Caixão acabara de passar pela calçada”.

Por volta de 1984, isso não ocorreu mais, pois o rapaz já não trabalhava mais ali, provavelmente e nunca mais eu me aborreci, embora possa afirmar que isso jamais me incomodou sobremaneira ao ponto de eu considerar como uma ofensa que me obrigasse a reagir para tomar uma posição de repúdio. Apenas achava desagradável a insistência na piada e ao mesmo tempo, a considerar triste a ocorrência, por denotar um sinal de ignorância alheia.

Ou então, se eu levasse a brincadeira ao pé da letra, eu deveria ter rogado uma praga para o infeliz e por meio dessa feitiçaria, ele morreria e alguém encarnaria no seu cadáver na mesma noite, bem ao gosto do verdadeiro Zé do Caixão.

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