Aconteceu no
tempo do Boca do Céu, em 1977...
Não
me recordo do seu nome verdadeiro e talvez eu seja lembrado sobre tal pormenor caso alguém que o tenha
conhecido também naquela época, aborde-me ao ler esta crônica, a fim de
colaborar com tal informação, mas por enquanto, digo apenas que o seu apelido era: “Qua-Qua”
e assim ele foi conhecido no bairro em nós morávamos como vizinhos.
Tratou-se de um rapaz ainda que ainda vivia o fim de
sua adolescência e que notabilizara-se por um aspecto negativo, a grosso modo,
embora fosse um bom menino em essência, oriundo de uma família de classe média que lhe deu
tudo em termos de estrutura, mas por conta de um deslize seu, de ordem pessoal, eis que ele colocou tudo a perder, infelizmente.
Foi o
seguinte: tal rapaz, assim como muitos que viveram intensamente aquelas duas décadas (1960 & 1970),
foi fortemente impactado pelo ideal contracultural, quando este ganhara
força a popularizar-se e assim a adquirir o contorno de movimento social e
comportamental.
Muitos jovens como ele inebriaram-se por tal ideal, mas
infelizmente ao enxergá-lo pelo viés do hedonismo puro e simples. A sensação de liberdade
total para buscar o prazer através das drogas alucinógenas, como mera
recreação e a perspectiva do sexo livre, formou dois pilares irresistíveis e tudo
isso a se amalgamar à arte em geral, música e ao Rock, sobretudo, claro que tratou por produzir
um apelo fortíssimo.
Nesses termos, quem não possuía uma estrutura psíquica muito firme e
não raciocinou sobre a contracultura sob aspectos mais sérios, quiçá com visão
filosófica e sob ditames espiritualizados, ou no mínimo, sob uma visão macro da sociopolítica, “dançou”, para se usar uma gíria da época a designar quem fracassara, em linhas
gerais.
E foi o que
ocorreu com esse rapaz, que desde a tenra idade encantara-se com toda essa
movimentação contracultural e a ter o Rock como carro chefe.
Ele era
articulado, em contraste com a sua ingenuidade por outros aspectos, pois havia
estudado desde pequeno em bons colégios, portanto continha consigo um bom grau de instrução,
cultura geral e era bastante inteligente.
Todavia, pelo estilo de sua criação familiar e
a se levar em conta o nicho social em que nascera, apesar dele ter estado mergulhado nos ideais da fraternidade, manteve outrossim, o seu
padrão pessoal de aparência, bem comportado, no sentido do que a sociedade conservadora esperava de todos, a evitar se vestir com roupas usadas por hippies,
freaks & Rockers e mantinha um corte de cabelo tradicional bem curto de visão militarizada,
a parecer ser um bom menino matriculado em um colégio católico e que costumava acompanhar
a sua vovó nas missas dominicais.
Na contrapartida da sua formação tradicionalista, a sua perspicácia era grande, pois entre amigos,
vangloriava-se dessa sua predisposição de manter um visual “careta”, mesmo
a nutrir a vontade recôndita de se parecer com um “freak”, pois isso dava-lhe a camuflagem necessária
para não ser incomodado pela sua família e sobretudo, evitava-lhe os
inevitáveis conflitos com uma polícia truculenta e arbitrária que atazanava a
vida dos cabeludos pelas ruas, mediante blitz e prisões, em uma época em que a
ditadura estava no seu auge e tal perseguição era inevitável.
Então,
o “Qua-Qua” a se considerar um genuíno “freak”, mas devidamente disfarçado dentro de seu quarto, protegido dos
perigos inerentes que tal opção de vida poder-lhe-ia proporcionar, mergulhou de
cabeça em seus discos e livros importados que consumia avidamente e até aí,
tudo bem, foi sorte dele que teve uma família que ofertava-lhe tudo o que pedia
e nessa altura, a sua coleção de discos mostrava-se gigantesca, ao ponto de chamar a
atenção dos freaks do bairro, que reconheciam o seu bom gosto musical.
E também
pelos livros, muitos a respeito da contracultura e do Rock, com biografias,
compêndios, HQ com motivações "freaks" (obras de Robert Crumb, sobretudo), textos mais pesados de filósofos libertários como Herbert Marcuse, Photo Books sobre turnês
de bandas de Rock internacionais etc.
Mas fora isso tudo, veio a reboque a
sua pior escolha, pois inebriado por tais ideais mal interpretados de sua parte, ele mergulhou de cabeça no consumo das
drogas pesadas, no afã de viver a “experiência”, e aí, foi a destruir a sua
vida, paulatinamente.
Os primeiros sinais de sua decadência vieram quando os
pais começaram a desconfiar de que o dinheiro reivindicado por ele para comprar
mais discos e livros, não estava a reverter no aumento da coleção, visivelmente
a se falar, ao analisar-se a sua estante.
Depois, o comportamento começou a mudar mais
acintosamente, com dificuldade de aprendizado na escola, apatia no cotidiano e
momentos de confusão mental, ou seja, o dito “não falar coisa-com-coisa”.
Paralelamente,
a família observou que ele passara a adotar a rotina diária de sair com pilhas de
discos debaixo do braço e voltar para a casa sem os mesmos. Indagado, ele alegava
que emprestava-os aos amigos, mas a sua vasta coleção diminuía a olho nu e
somados aos outros sinais, claro que finalmente a família caiu na realidade e
viu que o filho estava a vender os seus discos importados a “preço de banana”,
como se diz popularmente, para poder saldar dívidas contraídas com traficantes de drogas que ele recorria no seu bairro.
Veio a seguir uma fase com internações e
consultas a psicólogos, mas o estrago maior já fora efetuado e o inevitável
ocorreu.
Eu demorei meses para saber, até que perguntei para um amigo que
o conhecia igualmente, sobre o seu paradeiro, pois estranhei a sua ausência,
visto que ele passava em minha casa ao menos duas vezes por semana para oferecer-me
discos da sua coleção e a cobrar preços reduzidos ao extremo por tais álbuns.
Pois é, vencido pelos
excessos, “Qua-Qua” entrou para a estatística dos freaks que perderam a vida, vinculados
ao vício contraído pelo uso e abuso das drogas pesadas.
Ao pensar bem, creio que efeitos químicos
nocivos das drogas à parte, o que realmente ceifou a vida do “Qua-Qua”, foi a sua
falsa compreensão da contracultura e dessa forma, ele foi vítima de sua própria
ingenuidade, pois mergulhou sem critério e sem respaldo algum em uma aventura
alucinógena, "sem eira nem beira", talvez a pensar que encontraria respostas ao
adentrar um recinto extra-dimensional, acessado por uma possível porta da
percepção que abrir-se-ia através das drogas, motivado que ficara por buscar a
experiência do dito, “open mind”.
Mas o que ele encontrou na verdade, foi o oposto,
ao abraçar a morte.
História catastrófica... Se autodestruiu, agente duplo de 2 mundos! Muito provável, abusava da hóstia da contracultura, o tal LSD... Inevitável ñ ver aquela época como romântica, com adeptos da não-violência, do gozo, do misticismo, do altruísmo, da vida em comunidade ... Uma bela utopia...Agora, ver as maiores estrelas da época serem levadas pelo abuso desenfreado das drogas, marco triste. Página, crônica da hora!
ResponderExcluirA questão, acredito, foi que muitos não compreenderam a sutileza entre empolgarem-se mediante a perspectiva de buscar-se uma nova luz que desse um sentido maior à existência e o perigo advindo do uso de tais supostos agentes propiciadores dessa libertação. Foram realmente poucos que tiveram o discernimento para separar o joio do trigo e inebriados pelo prazer e nada mais, deixaram-se levar e aí, o corpo e a mente sucumbiram, pois o estrago foi / é grande, inevitavelmente. Foi o caso desse rapaz que descrevi na crônica e de muitos outros que tombaram, mesmo. Grato pela presença e opinião rica, que muito acrescenta ao debate !!
ExcluirE grato pelo elogio à crônica !!
Abraço, Patrícia !!
Até hoje é muito triste ver pessoas entrando nessa canoa furada que são as drogas, já experimentei com amigos cannabis sativa na adolescência, não gostei muito prq revelou o meu lado mais engraçado/ palhaço, sendo que ja faço minhas graças normalmente kk...vc não deve se sentir culpado, quem entra nessa não tem volta e sabe disso.
ResponderExcluirÉ uma pena, mesmo. Contudo, era quase inevitável que isso acontecesse, pois a imensa maioria não controlaria o ímpeto ante o prazer físico obtido em tais experimentações. E foi mesmo uma tragédia ver tantos a tombar. No caso desse garoto, nem tinha como ajudá-lo, pois meu contato era pouco e quando percebi que os discos que vendia tinham essa finalidade, já era tarde demais para ajudá-lo de alguma forma e além do mais, ele nem cogitava sair dessa.
ExcluirGrato por trazer sua opinião e com experiência pessoal para acrescentar.
Abração, Kim !!
O caminho do conhecimento é primordialmente uma questão de escolha. Saiba o que escolher, a cada pensamento.
ResponderExcluirExatamente, Chico !
ExcluirA grande lição do autoconhecimento é essa, mesmo. Buscar o acesso da porta da percepção, sem artifícios e sobretudo tendo a consciência que o agente propiciador de tal senha para adentrá-la está no interior do Ser e jamais virá do externo.
Grato por ler e comentar !!