domingo, 18 de março de 2018

Crônicas da Autobiografia - O Aluno que Desejava o Duelo e Nada Mais - Por Luiz Domingues

Aconteceu no tempo da minha "Sala de Aulas", por volta de 1989

Desde quando eu comecei a ministrar aulas, no mês de julho de 1987, como uma atividade paralela aos meus esforços em prol da carreira musical, houve um panorama padrão em minha clientela, ou seja, a imensa maioria que procurava-me como “professor”, nutria admiração pela minha trajetória na música, notadamente, com "A Chave do Sol", banda pela qual atuei na década de oitenta e que arregimentara muitos fãs.

Por isso, houve quase sempre o componente da admiração pessoal em cada um que me abordava e em alguns casos, certos alunos nem tinham tanta vontade para aprender a tocar baixo elétrico, mas queriam mesmo a aproximação e chance para conversar, forjar amizade, talvez até conhecer outras pessoas do meio, por meu intermédio. Mas claro, essas foram exceções, pois a maioria nutrira os seus sonhos pessoais e queria estudar com o objetivo de construir carreira, avançar com uma banda (e muitos já as mantinham, naturalmente). 

Em meio a tal panorama, dali do início de minha atividade como professor, até 1989, acostumei-me com o fato de que a maioria esmagadora, e posso dizer, total, foi formada por pessoas que me admiravam e consequentemente, respeitavam-me muito, fora o tratamento cortês da parte de todos.

Dentro dessa prerrogativa, eu fui surpreendido em determinado dia, mais ou menos entre março e abril de 1989, não me recordo ao certo, quando recebi um novo aluno em minha sala de aulas. No contato telefônico prévio, não notei nada de anormal na abordagem do rapaz. Combinamos dia e horário e nesse contato prévio, o sujeito manifestou-se com educação.

Entretanto, no dia da primeira aula eu já notei algo estranho assim que atendi a porta de meu apartamento, local onde eu mantinha a minha sala de aulas, naquela ocasião. Com atitude altiva e inexplicável ao considerar-se que fora o primeiro contato pessoal que mantivemos, foi com essa soberba quase indisfarçável que esse rapaz adentrou a minha residência. Bem, relevei, logicamente, afinal de contas poderia ter sido apenas uma interpretação equivocada da minha parte.

Uma vez instalados na sala de aulas, eu estabeleci o meu padrão no primeiro contato, que foi no sentido de conversar com o novo aluno e saber qual seria a experiência dele ao instrumento naquele momento e assim pedir para que ele tocasse livremente para eu fazer uma avaliação de seu estágio e só a dispensar esse procedimento aos que declaravam na entrevista preliminar, que estavam na estaca zero do aprendizado.

Com esse rapaz, a sua postura que eu achara altiva por ocasião de sua chegada, piorou, na medida em que notei que assim que lhe passei o instrumento, a minha suspeita confirmou-se por completo, pois ele fez um verdadeiro mise-en-scène para empunhar o baixo, não sem antes arrumar a sua longa cabeleira e posteriormente a exercer uma gesticulação grandiloquente, como se estivesse no palco de um grande festival internacional, com cem mil pessoas a gritarem pelo seu nome, em sinal de idolatria.

A seguir, o rapaz passou a executar solos bastante exagerados, ao demonstrar ser adepto daquela corrente virtuosística do Hard-Rock, quase no limiar do Heavy-Metal, bem em voga naquele momento do final de década de oitenta.

O sujeito fez determinadas escalas com uma rapidez estonteante, usou o recurso da técnica do “Two Hands”, também bastante típico para quem era entusiasta dessa estética e ficava a mirar-me com ar de soberba, como se esperasse que eu me mostrasse incomodado diante de sua técnica avançada e certamente a esperar que eu aceitasse a provocação para entrar em uma espécie de disputa, a caracterizar-se como um verdadeiro duelo, ali no ambiente da minha humilde sala de aulas.

Ao terminar a sua exibição, antes mesmo que eu pudesse falar alguma coisa, ele devolveu-me o instrumento e enfaticamente disse-me:

-“agora é a sua vez de mostrar-lhe a sua técnica”...

Bingo! Desvelou-se ali a verdadeira intenção do rapaz, pois ele não me procurara com a intenção de estudar comigo, mas o seu objetivo fora desafiar-me.

Não contente, ele foi ainda mais deselegante ao dizer com claro sinal de deboche, que “gostaria de ver o grande baixista d'A Chave do Sol apresentar algo novo que ele já não soubesse”.

O sujeito tocava muito bem, detinha uma grande técnica, não nego, mas eu não estava nem um pouco preocupado em estudar alucinadamente para ser reconhecido como um grande instrumentista, quiçá o melhor, justamente por que a minha escola na música não era a mesma que ele apreciava.

Como fã das estéticas dos anos 1960 & 1970, eu entrei na música com outros propósitos, ao estar comprometido pelos aspectos inerentes em termos culturais e comportamentais e não pela técnica, fanatismo pelo instrumento e obsessão pessoal em usar tais prerrogativas com mentalidade competitiva, como se fosse um esporte com adversários a serem sobrepujados.

Portanto, apenas limitei-me a dizer-lhe que visto que eu o avaliara com grande técnica e embasamento teórico similar a tal patamar, o meu método, técnica pessoal e nível teórico se mostrava nitidamente inferior e assim, acostumado a lidar com alunos com pouco ou nenhum conhecimento musical, eu não teria nada a acrescentar para ele.

Recomendei-lhe a seguir, que ele procurasse um professor com maior nível do que o meu, se quisesse crescer ainda mais ao instrumento.

Ele ficou visivelmente desapontado, pois o que desejara mesmo, fora duelar e “vencer-me”, talvez por ter alimentado algum tipo de raiva recôndita e sedimentada por considerar-se “injustiçado” por se sentir muito melhor do que eu em qualquer parâmetro musical, e talvez potencializado pelo fato de eu ter ficado naquele instante, mais famoso do que ele. Enfim, foi da parte dele uma atitude lastimável, se analisada por qualquer ponto de vista.

Como eu jamais interessei-me pelo mundo do Heavy-Metal, nunca soube se esse rapaz ascendeu em sua carreira a tocar em uma banda, gravar, quiçá ter partido para o exterior e doravante a se consagrar em sua carreira etc. Torço para que sim, não tenho nenhum motivo para desejar-lhe mal, apesar da desfeita subliminar que me aprontou.

E a minha vida como professor prosseguiu naquele instante de 1989, pois eu alonguei por mais dez anos tal atividade ao atingir um auge com essa atividade, de onde tenho muitas lembranças boas e orgulho dos meninos que ajudei com um modesto impulso inicial de minha parte e fato esse ocorrido bem depois, já no avançar dos anos noventa, conforme deixei claro no relato do meu livro autobiográfico.

E sobre esse prosseguimento da minha atividade como professor, após o episódio com esse aluno desafiador e pleno de soberba, ocorrido em 1989, eu nunca mais tive uma ocorrência semelhante, ainda bem.

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