Aconteceu no
tempo do Língua de Trapo, por volta de agosto de 1980
Um tipo de
acontecimento que é muito desagradável para qualquer artista, é quando alguém (quiçá muita gente na plateia), adota a postura deselegante de debochar
acintosamente da sua performance, a tirar-lhe a concentração cênica necessária
e mais do que isso, a ofender a sua dignidade artística.
O que
ocorreu-me indiretamente nesse sentido, foi que certa vez, ao voltar de um show
do Língua de Trapo, bem no começo das atividades da nossa banda, portanto a viver
ainda dias sob um padrão de produção muito simplória, eu estive acompanhado de um rapaz (que participara
da nossa apresentação como músico convidado e que por não ser componente da banda, apenas tenha feito uma participação especial naquela ocasião), em um show que assistimos juntos a posteriori, no mesmo dia.
Nós vínhamos de Osasco-SP, município da grande São Paulo, em direção ao centro da capital e
quando chegamos ao nosso destino inicial, ainda haveria uma segunda etapa a ser
percorrida, com a difícil missão de termos que enfrentar outro meio de transporte público e em
plena hora do “rush” paulistano.
Contudo, desistimos desse sacrifício para prosseguir na continuidade imediata da longa
jornada para podermos atingir bairros da zona leste da cidade, nosso destino final, onde respectivamente morávamos e
assim resolvemos adentrar na Biblioteca Municipal Mário de Andrade, onde sempre haviam
concertos eruditos e gratuitos nessa dita “Happy Hour”, portanto, foi uma ótima opção
para ganharmos tempo agradavelmente enquanto esperávamos o trânsito acalmar-se
ao ponto do transporte público mostrar-se menos lotado.
Sentamos na
galeria superior do seu belo e aconchegante auditório existente naquela biblioteca pública e
aos três sinais clássicos do teatro, eis que adentraram ao palco, um pianista e um
cantor lírico, com a programação sendo composta por árias de óperas e algumas
canções da MPB bem antiga, eu diria, pré-Velha Guarda, portanto a conter canções provenientes de
autores do século XIX, inclusive.
Assim que o
espetáculo iniciou-se, constatamos que o cantor era bastante afetado em seu
gestual. Ele apresentava sim, os maneirismos típicos da parte de cantores líricos
tradicionais, como na sua postura próxima ao piano, mãos colocadas à frente e
a agarrar-se mutuamente como a simular um encaixe em forma de elo com os dedos entrelaçados e um dos pés
virados de forma perpendicular, além do olhar vidrado para o infinito a não
encarar a plateia, principalmente aos que assistiam na parte inferior do auditório, abaixo
do nível do palco.
Até o término da primeira parte do sarau, com Árias de Óperas, foi tudo comedido sob o ponto de vista cênico, bem ao estilo desse padrão de apresentação tradicional, no entanto, quando começou a sua sessão com canções populares antigas, esse cantor não
conseguiu conter a Carmem Miranda que habitava o seu íntimo, digamos assim, e
passou a adotar uma postura histriônica e bastante efeminada, mas ao mesmo
tempo, a denotar uma aura muito obsoleta na forma de expressar-se, muito
diferente da ousadia avant-garde de um artista com coragem e determinação, como
Ney Matogrosso, por exemplo.
Portanto,
esse choque totalmente antagônico entre estéticas dispares entre si, foi demais para o meu colega de poltrona, que não
suportou e entrou em um surto de gargalhadas incontrolável, e claro, a sua atitude contagiou
muitas pessoas à nossa volta. Mais do que isso, tal reação obviamente chegou ao
palco e incomodou os artistas, é claro.
Um clima constrangedor instaurou-se,
pois o artista ao sentir-se menosprezado com tal manifestação, adotou a postura, talvez por descontrole emocional motivado pela raiva,
de exagerar ainda mais na sua performance e isso arruinou completamente a sua
apresentação, não resta dúvida.
Pessoas da
plateia, instaladas na parte inferior protestaram contra os que alojavam-se no
mezanino, pois notadamente deviam ser parentes e amigos do cantor ultrajado e eles tiveram razão
para reclamar, não posso deixar de considerar isso. Mas apesar dos pesares, o
artista conduziu o seu espetáculo até o final, o que também deve ser enaltecido.
Sobre esse
rapaz, que contagiou a todos com sua atitude debochada, que na verdade eu mal
conhecia, houve uma característica sua que reputo ter sido vital para recriminar tal
atitude de sua parte: ele era músico e tocava/estudava um típico instrumento sinfônico,
portanto uma agravante, ao considerar-se que seu métier era o da música
erudita em princípio, e sendo assim, a sua reação de debochar acintosamente do
artista, como algo reprovável, mesmo ao levar-se em conta que este realmente passara do ponto em sua
performance.
Em suma, esse rapaz jamais deveria ter adotado tal postura deselegante
contra um colega em cena. Foi o tal
negócio: se entrou no recinto e não gostou da performance do artista no palco,
deveria ter retirado-se, mas ao ficar ali com a intenção deliberada de desdenhar, realmente não fora uma
postura adequada para ninguém, principalmente para um músico, colega de
profissão do artista ali em cima do palco, e ainda mais, por ser em tese do mesmo nicho musical,
supostamente, o da música erudita, onde o recato da parte do público, é fundamental para a performance do artista e ele deveria saber bem dessa prerrogativa como um fator sine qua non.
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