segunda-feira, 28 de maio de 2018

Um Estranho Caso de Descaso - Por Luiz Domingues

Antonio Buonnoventura, também conhecido como: “Tom Buonno” era um jornalista veterano, colunista de um jornal de grande circulação na cidade de Bologna, na Itália. 
 
A sua coluna diária continha muitos seguidores, sendo um arraigado costume local não sair de casa antes de lê-la, ao tomar-se o café da manhã e claro, era sempre o primeiro comentário do dia em todas as repartições públicas, no comércio em geral, consultórios & escritórios e nas salas de aulas de toda a cidade. 
 
Eclético, ele cativava o seu leitor padrão por enfocar aspectos múltiplos do cotidiano local, sob um campo aberto para abordar qualquer assunto e todos, invariavelmente, versavam sobre aspectos significativas da cultura local, daí a identificação popular e imediata.
Tom Buonno criticava as autoridades pelas mazelas da administração pública, mas com uma carga de humor debochado, caricatural, que caia nas graças de todos e certamente que até as autoridades riam, todas as manhãs, apesar de tudo. 
 
E assim, por anos e anos, do buraco na calçada ao foguetório perpetrado pela torcida (“tifosi”) do clube de futebol local, o Bologna, nas suas grandes vitórias no campeonato, a passar pelas manifestações culturais, tudo o que envolvia a vida da cidade, era comentado pela sua coluna e o povo a adorava.
Seu editor, signore Gaetanno, tratava-o como a uma grande estrela da redação e por fazer de tudo para agradá-lo, designou-lhe um assistente pessoal, um misto de redator auxiliar, secretário e office-boy (quiçá, mordomo), a servir-lhe e assim, tal ragazzo chamado: Daniele Quidomagni, se mostrava muito prestativo e atencioso a atender os pedidos de Tom Buonno. 
 
Daniele era estudante de jornalismo e mostrava também o seu talento, com boa redação, muito interesse pela profissão e ficara óbvio que pleiteava crescer na carreira, a fim de se tornar um membro da redação do jornal, com proeminência dentro dessa equipe, um dia. 
 
E claro, ele sonhava em possuir a sua coluna exclusiva no futuro e fazer tanto ou maior sucesso que o próprio Buonno (convenhamos, foi um sonho plausível e legítimo). 
 
O próprio Buonno sabia disso e não incomodava-se com essa pretensão de seu estagiário e muito pelo contrário, ele admirava a sua determinação e de certa forma, identificava-se com o rapazinho, ao ver-se na mesma situação anos antes ao relembrar o início de sua própria carreira.
 
Portanto, não existia da parte de Buonno, nenhuma contrariedade sobre a explícita intenção do estagiário em galgar degraus ali, através dessa oportunidade.
Buonno, apesar da redação já estar a trabalhar com maquinário digital, ainda era adepto da velha guarda do jornalismo e assim usava a sua obsoleta máquina de datilografar, para elaborar a sua coluna.
 
Ele não era avesso à nova tecnologia e mostrava-se disposto a aprender a usar um computador para trabalhar, mas estava ainda na fase de postergar tal mudança estrutural em seu modo de agir, portanto a fazer uso da velha máquina, até uma segunda ordem. 
 
Mas eis que certa vez, em uma segunda-feira chuvosa e talvez influenciado pela manhã sem sol a se revelar melancólica, ele resolveu sentar-se à frente da tela de uma computador e começou a escrever o seu texto, mesmo a se atrapalhar muito com a sua inaptidão para entender o funcionamento da máquina, porém, providencialmente a ser ajudado por Daniele, que mais jovem, certamente já dominava o básico do mundo virtual.
 
E assim, Buonno tomou gosto pela tecnologia e a sua gama de recursos, a empolgar-se com a rapidez das resoluções, quando dessa forma, deixou de lado sua antiquada máquina datilográfica. Tudo bem que não a usava mais, mas claro que ela era dotada de um valor sentimental para ele, portanto, em princípio ele não cogitava desfazer-se dela, ao menos não imediatamente e provavelmente nunca, sendo bem honesto consigo próprio. 
 
No entanto, foi em um dia que fora da redação, em sua residência, Buonno recebeu um telefonema. Fora da parte do seu assistente, Daniele, em um domingo a noite, a dizer-lhe que surgira uma emergência na sua faculdade e um aviso sobre a antecipação de entrega de trabalho o surpreendera e como o seu computador pessoal estava no conserto, ele precisava de uma velha máquina de escrever para encerrar esse trabalho. A seguir, perguntou-lhe se não seria possível contar com a velha máquina de Buonno, emprestada.
Ora, Buonno nem pensou duas vezes e só disse ao seu assistente para vir buscá-la imediatamente. Cerca de trinta minutos depois, eis que um carro estacionou na porta, com Daniele e dois amigos a acompanhá-lo. Uma rápida visita concretizou-se, sob intenso clima de camaradagem, com todos a rirem bastante das piadas contadas, sob uma confraternização agradável. 
 
Danielle ainda com a máquina em mãos, foi enfático ao afirmar que a devolução seria rápida, ainda naquela semana. Mas a semana encerrou-se e o rapaz não falou nada, quando na sexta-feira posterior, limitou-se a dizer “Ciao” ao final do expediente.

Va bene, Buonno... 
 
Não havia até então, nenhum motivo para o velho jornalista preocupar-se, visto manter inteira confiança em seu subordinado a quem tratava coloquialmente, como um pupilo. 
 
Entretanto, na semana subsequente, Daniele não falou uma palavra sobre o empréstimo e na outra, na outra e na outra... igualmente. 
 
Apesar da estranha postergação, Buonno, que a cada dia estava mais desenvolto no manuseio do computador, nem sentia falta da obsoleta máquina datilográfica, no entanto, começou a cultivar um sentimento desconfortável, ao sentir-se em princípio desprestigiado pelo seu amigo e assim, ao quebrar o seu período sob longa espera, abordou Daniele ao perguntar-lhe, frontalmente, sem subterfúgios: 
 
- “e a minha máquina?” 
 
Ligeiramente ruborizado, este respondeu-lhe que pedia desculpas pela demora, mas a máquina estava bem cuidada e em breve seria devolvida.  
 
Buonno aceitou inocentemente a desculpa evasiva e decidiu internamente dar-lhe mais um voto de confiança. E sobre estar supostamente “bem cuidada”, ora, só faltava essa, que não estivesse...
Mas o tempo passou e a situação permaneceu imutável. Na inversa proporção, Buonno começou a irritar-se com as desculpas cada vez mais absurdas que Daniele fornecia-lhe a cada vez que era cobrado. Nem era pela máquina mais em si, que nessa altura detinha um valor econômico irrisório, sendo tratada como uma quinquilharia tão somente, mas a atitude pela qual Daniele pautara-se foi que irritara Buonno. Passaram-se meses e logo o efeito implacável da ampulheta, transformou essa espera em anos. 
 
Foi quando em uma ocasião onde Buonno o abordou e adotou a postura da franqueza absoluta, que um diálogo, na verdade um monólogo bizarro, estabeleceu-se. 
 
Daniele demonstrava nem lembrar-se mais do empréstimo e ficou atônito quando Buonno abriu seu coração: 
 
-“Prego, figlio... você pode por favor contar-me a razão pela qual não devolve a minha máquina?  Veja, nem vou ficar bravo ou te cobrar ressarcimento, cazzo... só quero saber o que você fez com ela, que não a devolve. Por acaso, ela quebrou? Você precisou de dinheiro e a vendeu? Reemprestou para alguém que sumiu com ela? 
 
Eu só quero saber a verdade, pode falar que não vou brigar contigo”.
Então, com os olhos arregalados, Daniele simplesmente não respondeu nada, e isso revelou-se incompreensível para Buonno, visto que o velho mestre deixara claro que não brigaria com ele, mas só desejava saber o motivo dessa situação irritante. 
 
Infelizmente, o silêncio de Daniele deixou o caso insolúvel e Buonno a ficar muito desapontado com a atitude de quem considerava um amigo, certamente.

Mais tempo se passou e de fato, Daniele tornou-se um grande jornalista, como foi previsto. Reverenciado e com muito merecimento profissional, por sinal, Daniele manteve o nível de respeito e admiração pelo velho Buonno, sempre a enaltecê-lo quando encontravam-se nos corredores e elevadores da redação do jornal. 

Buonno nunca o destratou por conta disso, e pelo contrário, não mudou o seu comportamento no que tangia à maneira pela qual tratava o seu ex-assistente e agora, celebrado jornalista. Mas a pergunta ficou no ar: onde foi parar a máquina e sobretudo, por que nunca foi esclarecida a questão sobre a sua não devolução?

2 comentários:

  1. Uma crônica com tema mais comum do que imaginamos. Quantos objetos emprestamos sem retorno e sem sabermos que fim levou. Coisas do ser humano!

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    1. Olá, Jani !

      Sim, ao emprestarmos objetos de nossa estima para um amigo (que naturalmente compartilha de nosso mesmo gosto, e por isso somos amigos, em tese), o básico em uma relação de respeito mútuo, é que ele seja devolvido no prazo prometido ou até antes, se possível e claro, absolutamente intacto. Portanto, ao não cumprir essa determinação, já caracteriza uma grande decepção. Mas pode ser pior, como ficou patente na crônica, com a postura de quem está em grave falta, a não esclarecer, protelar e não resolver jamais a situação degradante em não devolver, propositalmente. Aí a decepção fica elevada ao cubo !

      Grato por ler e comentar !

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