sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Chopp de Inverno - Por Marcelino Rodriguez

Há muito que a antiga alegria do chopp não existe mais pra mim. Os antigos humanos amistosos que confraternizavam com estranhos não existem mais. Sai mais cedo de casa do encontro que tinha com um amigo. Estava inquieto. Não é um país fácil de se viver atualmente, o Brasil. Um verdadeiro deserto de caráter e ideias. Uma população indiferente e mecanizada na maioria, caminha sem futuro sabido.
Tinha ainda uma hora até meu encontro marcado e resolvi tomar chopp, coisa que não fazia havia algum tempo. Escritor precisa dessas coisas, às vezes, fugir da realidade. Minha humanidade estranha estar entre humanos que andam aos montes pelas cidades e nem se cumprimentam. Os amores à primeira vista parece que fugiram da mitologia. Os melhores sonhos humanos parecem ter ido para um além sem fim. A humanidade desenvolveu a tecnologia e deu, ao mesmo tempo, uns passos atrás na sensibilidade.
Na fila, estava mais na frente uma menina sem um dos braços, que saiu com a amiguinha, ambas com uniforme de colégio. De repente, meus problemas ficaram pequenos, mas deu-me raiva de tudo. No meu chopp, eu ia pensando em escrever : "amável leitora", você não sabe o que é um cronista sozinho no meio da cidade imensa, sem um jardim humano de ternura. Você não sabe, amável leitora, o que é isso. 
Três, quatro chopps. Observo que venta e só Deus sabe dos meus pensamentos. A cidade é gelada. Amável leitora, eu tenho pensamentos idiotas quando estou sozinho, tipo "se eu pudesse voltar no tempo agora", para onde iria ? 
No tempo de Rubem Braga, ele escrevia coisa pras senhoras e recebia cartas como respostas, presentes, ás vezes até flores. Foi ele que inventou a "amável leitora", "gentil senhora" e outras cortesias que jogava em suas crônicas. Se eu pudesse voltar no tempo, iria para aquela sexta-feira, quando uma mulher deslumbrante chegou de branco no meu apartamento; depois, levaria essa mulher para o tempo do Rubem Braga; depois, no tempo do velho Braga, eu acabaria com a guerra mundial e não entraria mais num mundo onde se vê crianças sem braço.

Marcelino Rodriguez é colaborador ocasional do Blog Luiz Domingues 2. Escritor consagrado, com vasta obra lançada e celebrada pelo público e crítica, aqui brinda-nos com uma saborosa crônica urbana. 

4 comentários:

  1. Tocante, sensível mesmo! E provoca reflexão! Parabéns!

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    1. Olá, Pati !

      Concordo contigo, uma crônica curta, porém com muitas mensagens subliminares bem sensíveis e creio que você captou tudo com muita propriedade.

      Muito grato pela sua visita ao Blog e leitura da crônica do nosso colaborador.

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  2. foi DOLOROSO escrever essa. Mundo gelado. Abraços Luiz.

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    1. Imagino, meu amigo... não está fácil viver neste planeta. Nunca foi, mas digamos que nos últimos tempos, tem sido ainda mais penoso.

      Grato por mais uma obra !

      Grande abraço, Marcelino !

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