Aconteceu no
tempo do Boca do Céu, entre 1976 e 1977...
Em meio ao
sonho que ganhava contornos de realidade (embora diferentemente do que nós queríamos, sob um
ritmo muito aquém do que desejávamos na verdade), a nossa contrapartida à realidade
foi projetar a perspectiva de futuro e não basearmo-nos no presente que
era bem diferente.
A trocar em miúdos, sonhávamos com o mega estrelato do mundo
do Rock, mas a nossa realidade era prosaica, por sermos uma banda formada por
inexperientes adolescentes em fase de formação musical inicial e portanto, a anos-luz distante do que nós almejávamos.
Sendo assim,
quando lembro-me dessa fase, ao invés de outras pessoas que olham para o
passado sob o viés do auto-escárnio, a debochar de sua condições infantojuvenis
sob plena ingenuidade e despreparo ante a vida, eu penso o contrário e realço tal marca indelével, pois orgulho-me da tenacidade que tínhamos em
seguir, apesar dos parcos recursos e acima de tudo, pela incrível capacidade para
sonhar, que fora o nosso combustível para caminharmos para a frente, ainda que através do passo de uma tartaruga, reconheço.
Feita essa
ressalva em tom de exaltação sobre a força de vontade que movia-nos, conto uma
particularidade que eu apreciava muito nessa fase dos anos setenta em que empreendia os
meus primeiros passos com a minha primeira banda, o “Boca do Céu”, que foi exatamente a
sensação deliciosa de reconhecer signos inerentes da contracultura a borbulharem
em diversas situações.
E certamente a enaltecer a identificação com amigos e amigas que
viviam a mesma experiência sensorial, onírica e revolucionária, mas não com o
sentido bélico do termo (muito pelo contrário), mas pelo aspecto daquela
euforia perceptível por estarmos unidos sob um mesmo ideal aquariano.
Um pequeno
exemplo, entre tantos que vivi e que pretendo transformar em crônicas,
igualmente, diz respeito a um desses amigos cujo nome nem sabíamos qual seria exatamente, porém, aquele
sentimento de fraternidade era tão grande, que dispensava até a mais básica
funcionalidade da vida social, que é saber e decorar o nome de uma pessoa.
E
como seria possível estabelecer amizade com alguém cujo nome, você nem conhecia? Pois é, isso é difícil
de explicar às novas gerações, tanto quanto a moda hippie de se registrarem crianças
com nomes a evocar os fenômenos da natureza, algo que tornou-se risível após o vilipêndio
sistemático pelo qual o movimento foi submetido.
Mas enfim,
para ir ao cerne da questão, nos inúmeros shows de Rock que eu e meus companheiros
de banda fomos assistir juntos, entre 1976 e 1977, recordo-me de haver conhecido
muitos “freaks”, nessas circunstâncias em portas de teatros, arenas de clubes
esportivos e que tais.
Como por exemplo, eu e Laert Sarrumor conversávamos
sempre com um sujeito que demonstrava possuir um conhecimento enciclopédico sobre o Rock.
Nunca soubemos o seu nome, mas isso não nos incomodava em nada, pois sabíamos que
o encontraríamos em todos os shows e a conversa sempre fluiria de forma
agradável.
Esse sujeito carregava em sua enorme bolsa de couro, um caderno com
anotações e sempre o sacava para mostrar-nos a sua projeção sobre o possível “set
list” (lista de repertório), que o artista que apresentar-se-ia, iria tocar possivelmente,
baseado em sua avaliação pessoal.
Ora, vivíamos tempos em que a Internet já existia, mas como
mero experimento restrito às universidades, sob sigilo e obviamente de forma rudimentar
se comparado ao que observamos nos dias atuais (2018), e sendo assim, não
havia meio de empreenderem-se consultas prévias para obter tal informação.
Mas esse
sujeito fazia o que podia, mediante os padrões da época, ao estabelecer deduções a partir de um
cruzamento de informações que devia lhe consumir horas de seu cotidiano, por pesquisar
em revistas e jornais internacionais (e que eram caríssimas, diga-se de
passagem), mediante as suas conclusões, ele elaborava um set list que batia em quase
100% ao que acontecia de fato, quando o show ocorria e nós o admirávamos por
essa sua capacidade, quase premonitória, mas que na verdade, se tratara do fruto de uma
análise baseada na lógica.
Lembro-me
bem, quando assistimos o show do Joe Cocker no Ginásio da Portuguesa de
Desportos, em agosto de 1977 e ali dentro do complexo esportivo da gloriosa Lusa, cerca de uma hora antes do show de
abertura iniciar-se (realizado pela ótima banda: “Placa Luminosa”), eis que o “freak do caderninho”
profetizou as músicas que Cocker cantaria e incrível, da sua lista imaginada,
ele só falhou em uma aposta, a se tratar do blues: “Saint James Infirmary”, aliás, um blues
sensacional que eu adoro e lastimei que o Cocker não o tenha incluído no seu repertório,
para aquela noite.
Em uma outra
ocasião, em outro teatro, esse rapaz fez uma longa explanação sobre a carreira do Zé
Ramalho (que aguardávamos para
assistir ao vivo), que ele conhecia de cor e salteado e curioso, o Ramalho estava só
naquele instante de 1977, a vivenciar um sucesso de ordem mainstream, porque
anteriormente mantivera-se como um artista bastante obscuro em termos de grande massa, restrito apenas aos freaks mais antenados, que o adoravam, nosso caso.
Então foi isso, do jeito que apareceu em nossas
vidas, esse profeta do caderninho, sumiu. Já em meados de 1978, esse freak desapareceu dos shows e nunca mais soubemos
de seu paradeiro.
Espero que esteja vivo, bem de saúde e hoje em dia, se manteve o
mesmo espírito que teve na década de setenta, ele deve estar enlouquecido com a possibilidade infinita
da informação e pesquisa que a Internet proporciona e certamente a contribuir
para postar mais informações preciosas para enriquecer o acervo e exercer, em essência, uma
das marcas registradas por todos que encantaram-se pelos ideais, que foi o desejo de se compartilhar tudo fraternalmente e sem mesquinharias. Hippie mode on!
Nenhum comentário:
Postar um comentário