domingo, 19 de agosto de 2018

Crônicas da Autobiografia - O Hippie do Caderninho - Por Luiz Domingues

            Aconteceu no tempo do Boca do Céu, entre 1976 e 1977...

Em meio ao sonho que ganhava contornos de realidade (embora diferentemente do que nós queríamos, sob um ritmo muito aquém do que desejávamos na verdade), a nossa contrapartida à realidade foi projetar a perspectiva de futuro e não basearmo-nos no presente que era bem diferente. 
 
A trocar em miúdos, sonhávamos com o mega estrelato do mundo do Rock, mas a nossa realidade era prosaica, por sermos uma banda formada por inexperientes adolescentes em fase de formação musical inicial e portanto, a anos-luz distante do que nós almejávamos. 
 
Sendo assim, quando lembro-me dessa fase, ao invés de outras pessoas que olham para o passado sob o viés do auto-escárnio, a debochar de sua condições infantojuvenis sob plena ingenuidade e despreparo ante a vida, eu penso o contrário e realço tal marca indelével, pois orgulho-me da tenacidade que tínhamos em seguir, apesar dos parcos recursos e acima de tudo, pela incrível capacidade para sonhar, que fora o nosso combustível para caminharmos para a frente, ainda que através do passo de uma tartaruga, reconheço.
Feita essa ressalva em tom de exaltação sobre a força de vontade que movia-nos, conto uma particularidade que eu apreciava muito nessa fase dos anos setenta em que empreendia os meus primeiros passos com a minha primeira banda, o “Boca do Céu”, que foi exatamente a sensação deliciosa de reconhecer signos inerentes da contracultura a borbulharem em diversas situações.

E certamente a enaltecer a identificação com amigos e amigas que viviam a mesma experiência sensorial, onírica e revolucionária, mas não com o sentido bélico do termo (muito pelo contrário), mas pelo aspecto daquela euforia perceptível por estarmos unidos sob um mesmo ideal aquariano.

Um pequeno exemplo, entre tantos que vivi e que pretendo transformar em crônicas, igualmente, diz respeito a um desses amigos cujo nome nem sabíamos qual seria exatamente, porém, aquele sentimento de fraternidade era tão grande, que dispensava até a mais básica funcionalidade da vida social, que é saber e decorar o nome de uma pessoa.

E como seria possível estabelecer amizade com alguém cujo nome, você nem conhecia? Pois é, isso é difícil de explicar às novas gerações, tanto quanto a moda hippie de se registrarem crianças com nomes a evocar os fenômenos da natureza, algo que tornou-se risível após o vilipêndio sistemático pelo qual o movimento foi submetido.
Mas enfim, para ir ao cerne da questão, nos inúmeros shows de Rock que eu e meus companheiros de banda fomos assistir juntos, entre 1976 e 1977, recordo-me de haver conhecido muitos “freaks”, nessas circunstâncias em portas de teatros, arenas de clubes esportivos e que tais. 
 
Como por exemplo, eu e Laert Sarrumor conversávamos sempre com um sujeito que demonstrava possuir um conhecimento enciclopédico sobre o Rock. Nunca soubemos o seu nome, mas isso não nos incomodava em nada, pois sabíamos que o encontraríamos em todos os shows e a conversa sempre fluiria de forma agradável. 
Esse sujeito carregava em sua enorme bolsa de couro, um caderno com anotações e sempre o sacava para mostrar-nos a sua projeção sobre o possível “set list” (lista de repertório), que o artista que apresentar-se-ia, iria tocar possivelmente, baseado em sua avaliação pessoal. 
 
Ora, vivíamos tempos em que a Internet já existia, mas como mero experimento restrito às universidades, sob sigilo e obviamente de forma rudimentar se comparado ao que observamos nos dias atuais (2018), e sendo assim, não havia meio de empreenderem-se consultas prévias para obter tal informação.
Mas esse sujeito fazia o que podia, mediante os padrões da época, ao estabelecer deduções a partir de um cruzamento de informações que devia lhe consumir horas de seu cotidiano, por pesquisar em revistas e jornais internacionais (e que eram caríssimas, diga-se de passagem), mediante as suas conclusões, ele elaborava um set list que batia em quase 100% ao que acontecia de fato, quando o show ocorria e nós o admirávamos por essa sua capacidade, quase premonitória, mas que na verdade, se tratara do fruto de uma análise baseada na lógica.
Lembro-me bem, quando assistimos o show do Joe Cocker no Ginásio da Portuguesa de Desportos, em agosto de 1977 e ali dentro do complexo esportivo da gloriosa Lusa, cerca de uma hora antes do show de abertura iniciar-se (realizado pela ótima banda: “Placa Luminosa”), eis que o “freak do caderninho” profetizou as músicas que Cocker cantaria e incrível, da sua lista imaginada, ele só falhou em uma aposta, a se tratar do blues: “Saint James Infirmary”, aliás, um blues sensacional que eu adoro e lastimei que o Cocker não o tenha incluído no seu repertório, para aquela noite.

Em uma outra ocasião, em outro teatro, esse rapaz fez uma longa explanação sobre a carreira do Zé Ramalho (que aguardávamos para assistir ao vivo), que ele conhecia de cor e salteado e curioso, o Ramalho estava só naquele instante de 1977, a vivenciar um sucesso de ordem mainstream, porque anteriormente mantivera-se como um artista bastante obscuro em termos de grande massa, restrito apenas aos freaks mais antenados, que o adoravam, nosso caso.

Então foi isso, do jeito que apareceu em nossas vidas, esse profeta do caderninho, sumiu. Já em meados de 1978, esse freak desapareceu dos shows e nunca mais soubemos de seu paradeiro. 

Espero que esteja vivo, bem de saúde e hoje em dia, se manteve o mesmo espírito que teve na década de setenta, ele deve estar enlouquecido com a possibilidade infinita da informação e pesquisa que a Internet proporciona e certamente a contribuir para postar mais informações preciosas para enriquecer o acervo e exercer, em essência, uma das marcas registradas por todos que encantaram-se pelos ideais, que foi o desejo de se compartilhar tudo fraternalmente e sem mesquinharias. Hippie mode on!

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