quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Crônicas da Autobiografia - A Gaiola dos Doutores Alegres - Por Luiz Domingues

   Aconteceu no tempo d'A Chave do Sol... em agosto de 1982

Estávamos bem no princípio das atividades da nossa banda (A Chave do Sol) e nesses primeiros dois meses em que estávamos em atividade, ainda não havíamos estabelecido o nosso QG, em um quarto disponível na edícula da residência da família Gióia, fato que ocorreu logo após a realização de nossos primeiros dois shows, em setembro de 1982. 
 
Dessa forma, os primeiros ensaios realizados em meados de julho e no decorrer de agosto e setembro desse ano, foram realizados nas dependências do Café Teatro Deixa Falar, bem próximo da residência da família Gióia, por sinal, a se tratar de uma extrema gentileza de sua proprietária, uma senhora francesa, chamada, Sabine que nos oferecera a sua casa de espetáculos. 
 
Tal espaço estava decadente naquela ocasião e obtivera os seus dias de glória, anos antes, quando na metade dos anos setenta, ostentara o nome de: “Be Bop a Lula”, uma casa de espetáculos que apresentou em seu palco, quase todos os grandes nomes do Rock Brasileiro dessa década. 
 
Portanto, mesmo em declínio acentuado, a casa ainda mantinha a velha estrutura do palco, coxia, camarim e uma iluminação em mau estado de conservação, é verdade, mas ainda em condições de ser usada, razoavelmente. Portanto, ensaiar ali, apesar dos pesares, teve o seu lado bom, afirmo com certeza. 
 
E por estar decadente e naquele instante por ser um mero bar maltratado, Dona Sabine fez o que esteve ao seu alcance para gerar receita e no caso, ela costumava alugar o espaço para ensaios de musicais, peças teatrais, espetáculos de dança e o que mais aparecesse. 
 
Foi em um dia de ensaio d'A Chave do Sol, que recebemos o comunicado da parte de Dona Sabine, que teríamos um atraso para poder usar o palco para o nosso ensaio, visto que uma trupe de teatro que alugara o espaço, atrasaria para entregar-nos a instalação. Bem, não poderíamos reclamar, ensaiávamos ali gratuitamente, portanto resignamo-nos prontamente.
Esperamos do lado de fora por um bom tempo e cansados do atraso muito grande, resolvemos entrar para verificar o andamento desse ensaio dos atores e assim que chegamos ao salão central, deparamo-nos com a trupe a todo vapor, ainda a trabalhar. 
 
Os atores passavam o seu espetáculo inteiro, como ensaio geral, daí a demora e dessa forma, sentamo-nos em uma mesa e assistimos um pouco a performance. Tratava-se de uma espécie de revival do Teatro de Revista dos anos quarenta ou cinquenta, com sketchs musicais, dança, muita piada maliciosa à moda antiga e vedetes a sensualizarem, bem naquela perspectiva antiga do machismo explícito. 
Só que houve um detalhe a mais nessa equação: todos os atores eram homens e a desmunhecada foi total ali. Foi quando Dona Sabine abordou-nos e pediu-nos mais paciência pela demora e aproveitou para revelar-nos que esses rapazes eram atores amadores ali a ensaiarem e que na verdade eram todos médicos de um famoso hospital público localizado na zona sul de São Paulo. 
 
Nesse instante, enquanto rebolavam travestidos e desmunhecados, eles cantavam aquela velha canção carnavalesca do Ari Barroso, imortalizada pela Carmem Miranda, chamada: “Como Vaes” (“Como vaes você? Vou navegando, vou temperando/pra baixo todo santo ajuda/pra cima a coisa toda muda”...). 
 
Mas o mais surpreendente mesmo foi verificarmos a completa transformação pós-ensaio dessa orquestra de senhoritas, quando os seus membros saíram do estabelecimento a usarem as suas roupas brancas e jalecos e a carregarem as suas malas típicas para médicos, e sobretudo a falarem "grosso", pisarem firme e ao tratarem-se uns aos outros como: “Doutor”, na maior seriedade...

Foi quando um colega de minha banda, cujo nome não revelarei, soltou a frase: -“se eu passar mal, fiquem avisados para não levarem-me para esse hospital”... 

Sei que foi um outro tempo, movido a preconceitos enraizados, mas a afirmativa do amigo, foi tratada apenas como uma pilhéria entre nós.

Nenhum comentário:

Postar um comentário