domingo, 3 de fevereiro de 2019

Crônicas da Autobiografia - Ironizado no Ônibus - Por Luiz Domingues

                Aconteceu no tempo d'A Chave do Sol, em 1986...
 
Os anos 1980 não foram nada agradáveis para quem não comungou do revanchismo paradigmático proposto pela formação de opinião agressiva, oriunda das ideias que moveram o movimento Punk em 1977 e que por conseguinte, abriu as portas para ramificações múltiplas, em que a estética blasé do Pós-Punk criou os seus monstrengos a reboque. 

Pior ainda, para quem levou a sua bandeira aos píncaros do fanatismo, ao ponto de formar bandos truculentos, tais como verdadeiras hordas, bem semelhantes em termos de beligerância e ignorância, às torcidas uniformizadas dos clubes de futebol, ou seja, se no futebol os times e os resultados no campo de jogo, representam a parte menos importante no cotidiano desses brucutus, nessa mesma época, as gangues formadas supostamente para defender estéticas dentro do movimento em torno do Rock oitentista, importavam-se apenas em sair às ruas para hostilizar supostos oponentes que não compactuavam com as suas predileções de acordo com as suas idiossincrasias em prol do pseudo-Rock que seguiam na ocasião. 

Em resumo: para tais sujeitos, a música foi o que menos importou-lhes e o objetivo fora apenas hostilizar pessoas que visualmente aparentavam seguir outras tendências opostas.

Foram muitos os relatos policiais ao longo dessa década, a contabilizar brigas de ruas e muitas emboscadas em estações de metrô, terminais de ônibus, trens de subúrbio, igualmente em portas de estabelecimentos a apresentar shows e nas suas imediações. 

Eu mesmo passei por situações dessa monta algumas vezes, assim como tenho o relato de amigos e conhecidos que igualmente tiveram tal dissabor, uma lástima. 

Mas a história que eu tenho a narrar aqui é mais amena, embora não tenha sido agradável, pois se não envolveu violência física, propriamente dita, caracterizou uma situação de humilhação, intimidação, escárnio, desdém e falta de respeito, muito grande para com a minha pessoa.

Tal história ocorreu em uma noite de sexta-feira, em 1986, que antecedeu uma viagem que a minha banda na ocasião, A Chave do Sol, faria na manhã seguinte. 

Por tratar-se de uma viagem a ser realizada sob um horário matutino, eu havia recebido o convite do nosso baterista, José Luiz Dinola, para pernoitar em sua residência, a fim de minimizar o meu sacrifício para ter que acordar muito mais cedo, e assim deslocar-me do bairro do Tatuapé, na zona leste de São Paulo, onde eu morava na ocasião. 

Dinola morava com a sua namorada nessa época (Eliane Daic, vulgo, "Lili"), em um apartamento na Alameda Santos, quase na esquina com a Rua Bela Cintra, no bairro de Cerqueira Cesar, próximo à Avenida Paulista. 

Convite aceito de pronto, estava eu sossegado com a minha bagagem em mãos, a bordo de um ônibus a trafegar pela Avenida Paulista, quando senti a aproximação de um grupinho formado por rapazes e moças com visual Post-Punker, no uso de figurinos e maquiagem pesada, típica para quem seguia uma das vertentes daquela estética. 

Permaneci em silêncio e com relativa tranquilidade, pois se ao mesmo tempo eu sabia que seria molestado verbalmente, não temi por agressões físicas, pois entre tantas tribos oitentistas hostis, essa turma não possuía a fama de procurar as vias de fato, mas claro, em um momento desses, não seria possível confiar em estatísticas e assim, mantive-me atento e pronto a evadir-me do ônibus, se a iminência de algum ataque ficasse proeminente.

Eis que o mais impetuoso dos rapazes dessa turma, passou a cantarolar uma canção do Roberto Carlos, em claro sinal de deboche, a provocar-me, para fazer alusão à minha proibitiva longa cabeleira com inspiração sessenta-setentista, para aqueles dias. 

Enquanto tal rapaz destilava o seu deboche para diminuir-me, gratuitamente, as meninas do grupinho sentaram-se ao meu redor e passaram a tocar em meus cabelos. Não houve dúvida sobre a intenção de desdenhar de minha pessoa e bem naquele espírito tipicamente oitentista ao usar e abusar do paradigma de repúdio ao passado. O sujeito regozijava-se ao cantarolar a canção (com claro sinal de desprezo): -"Jesus Cristo... Jesus Cristo... Jesus Cristo, eu estou aqui"...  enquanto as meninas reforçavam o circo ali instaurado para humilhar-me, ao pronunciarem frases como: -"hei, Roberto Carlos"... ou: -"os Hippies já morreram, volte para Woodstock"...

Bem, é claro que o meu sangue ferveu para deixar-me bastante indignado na hora, por todos os motivos óbvios, inclusive a estupefação de verificar que além da extrema gratuidade do ato perpetrado por tais jovens, ficara a constatação que aquela patuleia não tinha horizontes na vida, pois francamente, abraçar tal tipo de manifestação de abordar e hostilizar pessoas que supostamente não seguiam os seus ideais, revelara a extrema fragilidade emocional de cada um ali, enquanto indivíduos e certamente sobre a estética pela qual diziam acreditar. 

Não reagi, certamente, pois não teria chances de enfrentar fisicamente cerca de dez pessoas que formavam tal grupinho e pelo menos seis ou sete ali, eram homens. Entretanto, de uma forma ingênua e bastante imprudente, eu diria (ao analisar hoje em dia), não contive-me e soltei uma frase em sinal de desagrado pela situação aviltante pela qual fora submetido naquele instante: "- sou hippie sim, mas quero ver se vocês serão o que são, daqui a alguns anos". Para a minha sorte, eles apenas riram e regozijaram-se da minha atitude intempestiva e certamente com uma carga melodramática que para eles deve ter soado como a uma apelação patética de minha parte.

Certo, 1986 em curso, eles estavam na crista da onda e hippies do passado como eu, representavam aos seus olhos, figuras quixotescas e desprezíveis. O seu ideário fora formado por paradigmas muito equivocados, eles não tiveram culpa (em tese), por terem acreditado na formação de opinião maledicente, mas aquela arrogância pela qual trataram-me de uma forma completamente despropositada, fora um acinte e certamente foi duro para digerir naquele momento. 

Entretanto, nada como um dia após o outro, não é mesmo? Aonde estarão essas pessoas hoje em dia? Ainda seriam entusiastas daquela estética? Saem pelas ruas à cata de pessoas que se mostram antagônicas aos seus ideais para hostilizá-las? Aliás, o que eles seguiam mesmo como ideal de vida? Aquela estética pela qual tanto mostraram-se encantados, levou-os aonde, exatamente?

Enquanto isso, a contrapartida é que trinta e três anos depois (1986-2019), eis que agora encontro-me firme e forte a acreditar na contracultura, no Rock, a observar os mesmos ideais aquarianos e com o cabelo ainda pela cintura, como uma marca indelével da minha obstinação para seguir os meus ideais. 

Esta crônica é uma mera revanche, então? Uma prova de força? Não foi a minha intenção, acredite, leitor. 

Contudo, que sirva como uma reflexão sobre o quanto devemos respeitar o próximo e as suas escolhas. Escrevo esta crônica em 2019, trinta e três anos depois do ocorrido e chegou a minha hora para cantarolar, mas se permite-me o leitor, com uma pequena modificação na letra escrita pelo Roberto Carlos em sua canção "Jesus Cristo": -"Jimi Hendrix... Janis Joplin... Brian Jones, eu ainda estou (e estarei), sempre, aqui!"

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