segunda-feira, 27 de maio de 2019

Crônicas da Autobiografia - A Contrariedade Velada - Por Luiz Domingues

                 Aconteceu no tempo do Sidharta, em 1999

Das quatro salas de ensaio que o Sidharta utilizou em sua trajetória, certamente que o estúdio do Paulo “PA” Antonio, ex-baterista do grupo Pop-Rock, “RPM”, localizado no bairro da Vila Mariana, na zona sul de São Paulo, foi o que mais gostamos de usar, por conter o despojamento e o astral muito próximo do que nós queríamos resgatar em termos de elos com a contracultura sessentista. 
 
Entretanto, apesar de apreciarmos todos esses fatores, chegou o dia em que um novo estúdio recém-inaugurado e localizado no bairro vizinho, a Aclimação, fez uma oferta melhor e nós resolvemos migrar para esse novo espaço. Bem, a despeito do bom preço acertado e o fato de que por ser novo, o estúdio continha condições estruturais bem melhores, incluso no quesito mais importante, que foi o equipamento disponível, a ambientação em termos mais subjetivos, não foi nem de longe compatível com a nossa expectativa.

Extremamente insosso, mais parecia uma clínica odontológica, pela sua frieza asséptica, com ares medicinais e impessoais. Até aí tudo bem, se no estúdio do “PA” nós tínhamos a sensação de estarmos a ensaiar em uma caverna hippie, ali nesse novo estúdio, tudo revelou-se frio em demasia, porém, visto pelo lado prático, não tratava-se da nossa casa e apenas um espaço alugado, portanto, apesar de não ser inspirador, haveria por servir ao propósito primordial, ou seja, simplesmente ensaiarmos.
Nesse estúdio haviam dois sócios, um que era muito simpático e portanto mais a ver conosco, por ser um guitarrista de blues em essência, portanto com um certo apreço pela sonoridade vintage que buscávamos no trabalho de nossa banda. E o outro, se tratara de um rapaz taciturno, sempre mal-humorado e declaradamente fã de Heavy-Metal extremo. 
 
Esse rapaz não era mal-educado, tampouco impertinente, pois nunca destratou-nos ou teceu comentários desagradáveis em relação à nós, pessoalmente ou à nossa banda, mas a sua antipatia em relação ao nosso trabalho e sobretudo sobre todos os signos que professávamos, revelou-se patente. 
 
Sempre a demonstrar os seu semblante tenso, como se vivesse vinte e quatro horas por dia, contrariado, ele mal disfarçava o seu incômodo ao ver-nos a entrar no ambiente, trajados com uma indumentária inteiramente contrária aos seus ideais, visto que usávamos batas indianas coloridas ou camisetas ao estilo “Tye-Dye” e calças “boca-de-sino”, em geral, em contraponto às suas bermudas e camisetas pretas a exibir estampas mediante capas de discos ultrajantes da parte de artistas do mundo do Heavy-Metal extremo que ele certamente devia apreciar. 
Tal choque de opiniões tão díspares entre si, não chegou ao ponto de incomodar-nos e creio, que a recíproca foi verdadeira em princípio, mas em um determinado dia, acho que o rapaz não suportou aguentar calado o seu incômodo e teve um ato falho por conta disso. 
 
Ocorreu que surgira uma conversa em torno de nós gravarmos uma demo-tape e como justamente o entusiasta do Heavy-Metal era o responsável pela operação do equipamento de gravação, como um "tape operator", foi ele a demonstrar as potencialidades do estúdio e claro, o seu portfólio para demonstração aos clientes foi composto logicamente por trabalhos realizados por bandas de Heavy-Metal que ali haviam gravado anteriormente. 
 
Pois foi nessa demonstração, que ele iniciou a falar sobre a parte técnica do estúdio, logicamente. No entanto, em dado instante, empolgou-se e assim, esqueceu-se inteiramente do seu propósito técnico e passou a tecer considerações estéticas sobre as bandas que ouvíamos. 
 
Ao lançar diversas odes ao Heavy-Metal extremo, tal rapaz nitidamente adotou uma postura de desabafo pessoal, ainda que velado. Falou-nos então com entusiasmo desmedido e despropositado sobre as maravilhas em torno daquela estética tão contrária aos nossos ideais e nós o respeitamos, obviamente, sem retrucar em momento algum, mesmo por que, não tínhamos nenhum interesse em convencê-lo que as estéticas que apreciávamos seriam supostamente melhores. 
 
Nunca, em momento algum, esbarrou-se em um confronto tenso e declarado, mas ao final, quando ele percebeu que nós não estávamos de forma alguma interessados no som daquelas bandas, ele fez uma pergunta em que escancarou enfim, todo o seu inconformismo com os nossos propósitos: -“vocês realmente gostam dessas coisas do passado?”
 
Pois é, gostávamos, ou melhor, gostamos...

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