quinta-feira, 23 de maio de 2019

O Caráter Efêmero da Vida - Por Luiz Domingues


Leonardo foi um menino que nasceu em uma ótima família e por conta disso, possuía uma segurança sociofinanceira muito sólida e fato raro, a apresentar entre os seus membros (em sua esmagadora maioria), somente pessoas com boa índole e mediante formação pessoal, sob todos os aspectos, muito boa. 
 
Com tal Lar tão bem estruturado, ótimo suporte financeiro e cercado por familiares amorosos, só um revés muito grande poderia destruir a perspectiva desse menino crescer com todos os bons atributos para se desenvolver.
Dessa forma, sem percalços muito sérios, Leo teve a sua criação sob muitas alegrias, a garantir-lhe o sustentáculo para que atingisse a idade escolar em ótimas condições e posterior entrada na adolescência, sob a mesma perspectiva. 
 
Pois foi aí nessa fase, onde a sua compreensão da vida ampliou-se sobremaneira. que ele passou a refletir com maior profundidade sobre a sua própria condição. Nesses termos, ele descobriu o prazer da autoanálise e assim, gostava de passar algum tempo sozinho em algum cômodo de sua residência a refletir sobre a sua própria vida. 
 
Entre tantos devaneios que ele se propôs a estabelecer, ele prestou atenção aos detalhes que a sua percepção pudesse alcançar e armazenar, como por exemplo, associar a personalidade de cada membro da sua família aos diversos signos sensoriais que notava no cotidiano daquela casa. 
 
Neste caso, os odores e sabores provenientes das refeições realizadas pela família, os sons ali produzidos que eram típicos do cotidiano da casa e que que foram desde os discos que o papai colocava na pick-up da vitrola, ao ruído prosaico gerado pelo atrito dos chinelos da vovó, quando ela caminhava ali dentro. 
 
E havia o ruído do telefone,  o cuco do relógio antigo que fora comprado pelo vovô, tantas décadas atrás, a voz da mamãe etc. 
 
E as festas familiares, com aquelas risadas, os casos engraçados que foram contados por aquele tio maluco que todos adoravam, a visita dos outros tios e primos, os jogos de tabuleiro que avançavam pela madrugada, a bola que tanto chutou no quintal, a bicicleta e as vozes dos vizinhos do outro lado dos muros.
 
Houveram momentos ruins, é claro, como por exemplo, quando parentes faleceram, ocorreram doenças e acidentes a envolver familiares e amigos. Pequenos aborrecimentos ocorridos na escola também entraram na pauta e da parte de desavenças, o dia em que o pai não deixou o irmão mais novo ir com os seus amigos da escola, assistir o futebol no estádio e acredite, naquele tempo não era algo tão perigoso. E também o dia em que a sua irmã bateu a porta do quarto, contrariada por alguma desavença com o namorado.
Mas no cômputo geral, a balança pendera para as boas lembranças e aquela análise ali, sem distanciamento temporal algum, serviu-lhe como uma reflexão bem atípica, no sentido de que não é usual valorizar-se as coisas boas que usufruímos, enquanto as possuímos, visto que o senso comum nos induz a só pensarmos nelas, quando já não as temos mais. 
 
Por esse aspecto, foi salutar tal introspecção, no entanto, tal exercício tornar-se-ia ainda mais importante no futuro, quando tal impressão tão fortemente construída mediante as suas divagações adolescentes, ganhou um contorno ainda mais profundo, muitos anos depois. 
 
Eis que passados mais de cinquenta anos dessa fase em que gostava de permanecer sozinho, a pensar em tudo o que o cercava naquela casa, Leonardo, agora um senhor de meia idade a avançar rapidamente para a velhice, lembrou-se dessas divagações que costumava fazer e um dia, pensou detidamente em tudo o que costumava analisar e valorizar em sua adolescência. 
 
Entretanto, nesta fase da idade mais avançada, sob outra perspectiva diferente, ou seja, ele não estava mais a viver do pleno usufruto de toda aquela ambientação e sobretudo a dispor das pessoas queridas que o cercavam, a maioria delas já desaparecidas do seu convívio.
 
Então, sob tal realidade muito diferente, Leonardo lembrou-se de tudo e de todos, e por tal reminiscência, ele regozijou-se com a gratidão de quem tivera de fato, uma vida ótima, no desfrute de uma estrutura familiar exemplar e principalmente por ter sido membro de uma família composta por pessoas amorosas, com a melhor índole possível. Todavia, a grande lição que ele tirou dessa reavaliação da sua vida, foi outra. 
Desta feita, o que pensou detidamente foi sobre o caráter efêmero da vida. Pois tantos anos depois, toda aquela gama de impressões geradas pelas lembranças múltiplas produzidas pela casa, a conter acontecimentos ali vividos no sentido da ambientação sociocultural e política daquela época remota e sobretudo pela pessoas que ali habitaram-na com ele, esvaíra-se, ou seja, simplesmente não existia mais tal realidade. 
 
Quase todos os seus entes queridos já haviam partido deste mundo. A casa nem pertencia mais à família e havia passado por tantas reformas, que mal conseguia lembrar aquela arquitetura com a qual ele tanto usufruíra. Tampouco a rua, com a enorme quantidade de casas que foram demolidas para dar lugar aos espigões, símbolos da especulação imobiliária predadora. E convenhamos, nem mesmo a atmosfera ficara minimamente parecida, pois dava para sentir a vibração diferente no ar.
Mas tal reflexão não teve nem de longe o sentido do apego ao passado. Não foi um lamento, de forma alguma. O que ocorreu ali, foi que Leonardo tomou ciência de uma forma avassaladora, que a vida em sua percepção material, tem um sentido efêmero. 
 
Nenhuma estrutura, por mais confortável que seja, sustenta-se para sempre e esse é lado bom do dinamismo que move a evolução. Por mais maravilhoso que fosse ter quinze anos de idade para sempre, a ouvir o ruído do chinelo da vovó, o som do cuco do relógio do vovô; o disco de vinil com a trilha sonora de um filme que o seu pai gostava de ouvir e o aroma daquele tempero caseiro que vinha da cozinha, preparado pela mamãe, nada disso seria perpetuado para sempre, no sentido material do termo, visto que na sua percepção pessoal, ele soube que concomitantemente, estava tudo dentro de si e aí sim, como um tesouro eternizado.

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