quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Ele Seguiu, Simplesmente... - Por Luiz Domingues

 

Astrófilo Birafa tinha desde pequeno um incômodo natural por conta do seu nome e sobrenome, ambos bastante exóticos, que certamente lhe causara constrangimentos por conta da estranheza sonora e ortográfica. Para tentar neutralizar tais reações tão negativas ele costumava usar o apelido de "Astro" para amenizar o impacto. Infelizmente, esta alcunha também gerava especulações desagradáveis que o incomodavam, portanto, nesse quesito da sua identificação pessoal no âmbito social, ele jamais foi feliz.

Para piorar o seu infortúnio, ele perdera os pais muito cedo, foi criado por avós que também já haviam partido e era filho único, portanto, tirante alguns poucos tios e primos com os quais ele nunca teve amizade, era um solitário contumaz.

Resignado também com a falta de estudos e consequente impossibilidade de arregimentar uma melhor condição de vida, trabalhava em uma corretora de seguros em um cargo baixo e no caso, o seu serviço era o do atendimento telefônico direto com os segurados, no período de 16 às 2 horas da manhã. 

Humilde por natureza e sem nenhum prestígio, ele se acostumara a aceitar o que lhe impunham e dessa forma, sem poder barganhar com a chefia a possibilidade de poder cumprir um horário mais adequado à sua humilde condição social, ele aceitou a imposição e se acostumou com a ideia de ter que voltar para a sua casa durante a alta madrugada e a depender de condução pública, certamente precária, mediante tal horário insalubre. 

Tirante os perigos noturnos óbvios, ele aprendeu a se esquivar de certas situações e assim, quando percebia alguma aproximação suspeita perto do ponto de ônibus, descobrira um esconderijo improvisado em um espaço sob recuo de um residência próxima e ali se escondia até a rua ficar deserta novamente.

Noite após noite, ali ele passou por frio & calor, sono & cansaço, fome & sede, crises de dores as mais diversas, se esquivou de chuvas torrenciais, se acostumou com a presença de gatos e cachorros de rua, também dos pássaros específicos de cada estação do ano ali a emitirem os seus cantos característicos, eventuais brigas familiares a irromperem nas residências do entorno, carros em manobras perigosas sob altíssima velocidade e pilotados por garotos bem-nascidos e malcriados, eventuais sirenes com carros de polícia, bombeiros ou ambulâncias sob frenesi etc. 

No entanto, o que mais lhe marcou nessas centenas de madrugadas em que ele amargara a dura espera pela condução redentora que o levaria enfim sob uma relativa segurança até a sua residência, foi o fato de que o ônibus funcionava com bastante pontualidade, ainda bem, ao passar ali naquele ponto, todo dia às 3 horas da manhã. Tanto era assim, que por volta de 2:55 horas, já era possível ouvir o ronco do seu motor a se deslocar na mesma rua, mesmo sob uma razoável distância a demarcar diversos quarteirões anteriores.

Tal ruído do motor era sempre motivo de alento e quando já se mostrava visível a cerca de 50 metros, Astrófilo fazia o clássico sinal gestual a solicitar a entrada no veículo. Noite após noite, era sempre o mesmo motorista que o dirigia e assim que entrava no ônibus, ele o cumprimentava, embora o condutor jamais tenha lhe respondido a saudação respeitosa. Tudo bem, cidade grande, as pessoas tendem a se portarem de forma fria, sem gentileza alguma no trato pessoal. Mesmo assim, ele repetia esse ritual todo dia, talvez como uma forma de expressar o seu agradecimento ao motorista, pois, pelo menos em sua percepção pessoal, esse senhor representava alguém importante na sua vida, ainda que de uma forma completamente aleatória.

Tanto foi assim, que Astrófilo elucubrou que após tantos anos a repetir essa rotina, mesmo que o motorista jamais tenha respondido o seu cumprimento, seria algo óbvio que este o conhecia também e sabia muito bem que ele, "Astro", dependia muito daquela condução por estar regularmente ali naquele ponto a aguardá-lo em tal horário tão desconfortável por pura necessidade e não por uma escolha a esmo.

Entretanto, eis que um dia o imponderável aconteceu. No mesmo horário de sempre, dentro da mais regular rotina, a faltar cinco minutos para as três horas da manhã, Astrófilo ouviu o ruído do motor ao longe. Ele levantou-se assim que enxergou os faróis do veículo na esquina anterior e a faltar os mesmos cinquenta metros de sempre, sinalizou com o seu braço, para que o veterano motorista parasse e o deixasse embarcar no coletivo. Contudo, eis que o condutor não reduziu a velocidade do seu bólido e simplesmente não freou para que Astrófilo pudesse nele embarcar.  

Assim que passou incólume, o motorista olhou de uma forma fria para Astrófilo e simplesmente seguiu adiante. Alegar que não vira ninguém no ponto a sinalizar para ele, teria sido uma inverdade, portanto, o que teria justificado a atitude tão despropositada da sua parte? E ainda mais pela condição que havia, ainda que muito velada, sobre ambos serem "conhecidos" entre si, há tantos anos.

Talvez se fosse um outro motorista, Astrófilo teria perdido a cabeça e esboçado correr atrás do ônibus, gritado e até xingado, mas ele se limitou a permanecer atônito, a mirar o ônibus que seguiu a sua viagem. E se aquele ônibus das três da manhã era cansativo para ele, o que dizer sobre ter que amargar mais duas horas de espera, pelo próximo, que só passava às cinco? 

O senhor grisalho, condutor do ônibus das três, não sabia disso?

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