Tal convite para participarmos veio da parte do cantor/gaitista e guitarrista, Big Chico, que conhecêramos por ocasião de sua participação no Projeto Quarta Blues da Magnólia Blues Band e também pelo fato d'Os Kurandeiros terem sido a sua banda de apoio em seu show no Festival: "Hoje tem Blues", do qual participamos em outubro de 2014, através de uma unidade do CEU (Centro Escolar Unificado), no caso, o Ceu Jaguaré.
Big Chico já havia participado de edições anteriores do Festival de Cunha-SP, e desta feita assumira a curadoria, ao indicar artistas para participar e daí, o seu gentil oferecimento.
A logística não foi muito confortável, pois a verba oferecida para custear o nosso transporte, mal cobrira o gasto com gasolina e pedágios para dois carros, visto que não seria possível alugarmos uma van e mesmo ao não precisarmos levar a bateria própria e o backline básico, a carga mínima de volumes para nos apresentarmos, não comportava o uso de um automóvel, apenas. Dessa maneira, mesmo com a verba bem apertada, decidimos irmos com dois carros, e no caso, o meu que era mais espaçoso do que o do Carlinhos; e o do Kim.
Combinamos de sair cedo, bem no início da tarde, mesmo ao saber que o show seria às 21 horas. Não queríamos correr riscos desnecessários e mesmo que tenha sido um período difícil para viajar, pois entrar na estrada no período do verão é normalmente um sacrifício escaldante em via de regra, mas mesmo assim, pensamos que compensaria chegarmos bem cedo à Cunha-SP, por volta das 17 horas em nossos cálculos, para apreciarmos a cidade que fica localizada em uma região serrana e há ali disponível, muita natureza, ao atrair turistas.
Preparei o meu carro, certamente, um dia antes, ao providenciar a troca de óleo, calibragem de pneus e abastecimento de combustível e água e estava tudo certo para adentrarmos a estrada.
Nos encontramos na residência do Kim e de lá partimos em comboio rumo à via Dutra, estrada que liga São Paulo ao Rio de Janeiro, com o objetivo de seguir em frente até a cidade de Guaratinguetá-SP, onde há o acesso à rodovia Cunha-Paraty, sinuosa e serrana, muito bonita com seu visual da natureza, mas ao mesmo tempo, perigosa, certamente.
Para quem não conhece São Paulo, capital e estado, digo que qualquer estrada que sai da cidade de São Paulo em qualquer direção, seja rumo ao interior ou ao litoral do estado, enfrenta tráfego pesado, quando não trânsito engarrafado em um raio de pelo menos 100 Km. E a Via Dutra, por ligar as duas maiores capitais do Brasil, São Paulo e Rio de Janeiro, mantém um trânsito que a faz parecer uma avenida, e não uma estrada, propriamente dita.
Portanto, seguimos mais ou menos juntos, o meu carro e do Kim, mas perto do pedágio de Jacareí-SP, nos perdemos de vista, contudo, não havia nada de errado em perdermos o contato visual em um dado instante, pois se algo ocorresse, bastava o Carlinhos ligar para a Lara Pap, nossa produtora e esposa do Kim, que seguia viagem no outro carro.
Não me dei conta que isso não estava a ocorrer, pois também com o carro em movimento e a conversa agradável a tratar sobre reminiscências do Carlinhos e minhas sobre o anos setenta (é incrível a quantidade de shows de Rock e outros eventos freaks em que estivemos juntos naquela década, mas sem nos conhecermos ainda, portanto, é o tipo de conversa que sempre voa longe para nós dois). Contudo, quando o trânsito perto de São José dos Campos nos obrigou a parar, foi que me dei conta que a situação ficara preocupante, visto que sinais de fumaça vinham do capô do meu carro, e o ponteiro subira vertiginosamente.
Em suma, o radiador estava a ferver, e eu precisava parar para verificar o que ocorria e tomar uma providência. Por azar absoluto, não havia nenhum posto de gasolina à vista e na iminência do radiador ferver e travar tudo, parei no acostamento e fomos olhar, eu e Carlinhos. De fato, o reservatório de água estava a ferver e aquilo foi incompreensível, visto que no dia anterior, eu havia renovado o aditivo, portanto estava tudo bem com o radiador e o tanque de reservatório d'água.
Na mangueira de água, não havia nenhum indício de vazamento. Portanto, a solução foi esperar esfriar e naquele calor da tarde interiorana, foi uma missão vagarosa, e dessa forma, a meta foi achar um posto de gasolina para reabastecer o reservatório e fazer uma verificação mais apurada.
Por muito azar, não havia posto avistável e assim, na primeira entrada disponível, fomos para dentro de um bairro de periferia de São José dos Campos-SP, onde finalmente achamos um posto. Mais um tempo passamos a esperar esfriar e um novo abastecimento foi efetuado. E lá foi a água ferver de novo, mesmo com o carro parado sob uma boa sombra...
Os frentistas tentaram de tudo para nos ajudar, mas ninguém conseguia entender o que acontecia. Já batia na casa das 17 horas, e nesse instante, os nossos amigos já deviam estar em Cunha-SP e muito preocupados conosco. Por celular, simplesmente não conseguíamos falar com eles e até contato via telefone fixo do posto tentamos, mas nem sinal de área conseguíamos. Nessa altura, fomos informados que os mecânicos das redondezas já estavam todos fechados e em plena sexta feira, infelizmente, a perspectiva seria a de abrirem apenas na próxima segunda-feira pela manhã...
Uma outra solução seria usar um táxi e ir ao centro de São José dos Campos e procurar por uma oficina, mas sem conhecer a cidade e ela é enorme, já quase a contar com a casa de um milhão de habitantes, seria uma busca inglória. Foi quando começou uma séria de tentativas marcadas pelo improviso e positivo, aquela solidariedade que pensamos que não existir mais neste planeta, mas nessa hora, verificamos que sim, ela existia...
Um dos frentistas ofereceu a sua caixa de reservatório de seu carro que ele não usaria naquele final de semana. Relutamos, mas na hora do sufoco e com os ponteiros do relógio a voar, literalmente, já estávamos a contar em chegar em cima da hora no festival, a eliminar completamente a possibilidade de um soundcheck decente no palco do evento. Portanto, aceitamos a gentil oferta. O carro do rapaz era similar ao meu e a peça haveria de ser padrão, mas não era!
E nessa altura, já havíamos descoberto que o problema, efetivamente se tratara de uma falha tão estúpida que chegou a dar raiva. A borracha interna da tampa do reservatório de água do radiador, havia perdido a sua elasticidade e devido a isso, a tampa não fechava com a devida pressão e assim, não dava para acionar a ventoinha, que proveria a refrigeração natural do radiador.
Uma simples borracha circular que não devia custar mais do que R$ 1,00, mas por ser específica para aquela medida, não teria substituição com outro material. E tentamos fita de vedação de encanamentos, silicone e outras borrachas, mas nada adiantara.
Quando já batia na casa das 19 horas, e já estávamos desolados, um motoqueiro que parara para abastecer, nos ouviu a conversar com os frentistas. O rapaz se aproximou, ouviu a conversa e interveio.
Ao se parecer aqueles acontecimentos fortuitos que Rockers gostam de atribuir a sinais mágicos e aliás, típicos de quem professa o Rock de verdade, o rapaz disse que se prontificava a buscar uma tampa nova para nós, em um posto onde sabia existir uma loja de autopeças 24 horas, mas que ficava na estrada, a caminho de Caçapava-SP, a cidade vizinha. Foi uma oferta irrecusável e o rapaz não quis aceitar nem a ajuda para a gasolina que gastou. Em menos de uma hora, já estávamos de novo na estrada, com o radiador a funcionar absolutamente normal e tudo fora causado por conta de uma borracha com valor ínfimo.
Muito atrasados, mas felizes, viajamos a contar os minutos e a comemorar a cada placa que víamos, a aproximação da cidade de Cunha-SP. A nossa sorte, foi que a estrada Cunha-Paraty, apesar de muito perigosa, estava absolutamente vazia naquele momento e assim, mesmo ao evitar os excessos, imprimimos uma velocidade máxima ali permitida e em constância, sem mais nenhum empecilho a nos atrasar.
Quando avistamos a cidade, respiramos aliviados, e apesar de sermos dois senhores cinquentões, a nossa alegria foi juvenil, como se estivéssemos na adolescência, a vencermos uma gincana escolar. Foi um ponto de honra chegar à Cunha, a tempo de pelo menos tocarmos metade do show previsto, portanto, tratamos como uma vitória, a nossa entrada na cidade.
Estacionamos na praça central da cidade e de longe ouvíamos o Kim tocar e cantar, acompanhado de Edu Dias que o auxiliou a tocar gaita e a cantar, também. Fiquei arrepiado ao vê-los ali a enfrentar a praça lotada, sem o nosso suporte, desfalcados portanto do peso de uma banda.
Não seria possível tocar a imensa maioria das músicas programadas no set list, mas apenas baladas amenas e um ou outro Blues de raiz. Não caracterizava o som que esperavam de nós, mas fiquei muito orgulhoso de ver a coragem e a hombridade artística que o Kim teve de subir e enfrentar sozinho, e sei que o faria, mesmo que se não tivesse o apoio do Edu Dias, que fora o nosso convidado naquela noite.
Quando nos viu a correr com o meu baixo e peças de bateria, praça adentro, a produtora, Lara Pap, veio nos auxiliar, e eu só pude balbuciar algo na base do: -"depois te contamos tudo", mas ela entendeu perfeitamente a nossa pressa.
Com o Kim a tocar e cantar, fomos a montar as coisas ali na frente do público, uma prática que eu abomino fortemente, mas diante das circunstâncias dramáticas com as quais essa chegada à Cunha se revestira, não houve outro meio mais discreto de nos prepararmos.
Assim que eu fiquei pronto, e claro que no meu caso, a minha preparação era mais simples para se ajeitar, já pus-me a encorpar o som, a tocar, imediatamente. Carlinhos ainda ficou a ajustar as suas peças à carcaça de bateria que havia ali disponibilizada, e somente duas músicas depois, entrou conosco.
Foto: Ryu Uehara Dias
Quando o som encorpou de vez e a banda soou como se devia, o Kim foi a promover as suas escolhas de repertório a dar mais vazão para que a euforia se pronunciasse, e o público que parecia apático, levantou-se. Não quero dizer com isso que éramos imprescindíveis ao ponto de suplantar o brilho pessoal do Kim e do próprio, Edu Dias, mas com a banda a tocar junto com muita energia e o repertório a favorecer, o público inflamou-se.
Foto: Lara Pap
Um outro fator importante, o Kim nos confessou que subira ao palco para cumprir a sua parte e não deixar o vácuo, sob um ato que extrapolou o profissionalismo, mas que se revelou heroico, até. Não é qualquer artista que se dispõe a fazer isso e sob uma circunstância excepcional dessa monta, a tendência seria mandar cancelar o evento.
Além do mais, ele confessou-nos que estava muito nervoso e que a situação o fizera pensar no pior e que fora um martírio angustiante para ele subir para entreter o público, ao imaginar que talvez eu e Carlinhos estivéssemos mortos, vítimas de um acidente na estrada. A sua fala cortou-me o coração, pois pude imaginar a sua angústia, ao pensar nas elucubrações pessimistas que sempre cogitamos quando ficamos sem notícias de familiares e/ou amigos.
O show deveria ter acabado por volta das dez e meia da noite, mas com nossa chegada quase quarenta minutos depois, e pelo fato do público estar a apreciar muito, o representante do secretário de cultura falou para tocarmos o quanto quiséssemos.
Era quase meia-noite, quando encerramos e uma reversão completa do astral houvera sido feita. Da perspectiva melancólica de um quase não comparecimento da nossa banda, nós conseguimos fazer o show e esticá-lo de uma forma absurda, com o público completamente ao nosso favor, a apreciar muito. E por se tratar de um público híbrido, víamos todo o tipo de gente ali presente: de Rockers locais a idosos, a passar por muitas famílias, crianças e adolescentes etc.
Fim do show, com o Kim a exibir a escultura feita em homenagem aos Kurandeiros, ofertada pelo artista plástico da cidade de Cunha-SP, Denis Akino. Foto: Lara Pap
Eis o Link para assistir no YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=_HcI4y2bUSQ
Um escultor local, chamado: Denis Akino, nos ofertou uma peça de madeira por ele feita em nossa homenagem, e que o Kim guardou com carinho na sua coleção de memorabilia. Um gesto muito bonito e de certa forma, tipicamente interiorano, no sentido da hospitalidade sempre ofertada em grande profusão.
Eis o Link para assistir no YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=RA7UeC4LsTM
Eis o Link para assistir no YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=8sHEJVvQ8_8
Quando o show acabou, fomos muito assediados pelas pessoas e ficamos muito felizes, duplamente: pelo sucesso do espetáculo, mas também pela nossa tenacidade em termos feito tanto esforço para não deixar de cumprir o compromisso.
Eis o Link para assistir no YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=KWs-NKa2am4
"Black Cat Moan" no Festival de Jazz & Blues em Cunha /SP, em 9 de janeiro de 2015
Eis o Link para assistir no YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=yQO23KL6wJA
Me senti muito feliz por ter conseguido chegar e tocar, a complementar a nossa banda ante o compromisso firmado. E mais que isso, pelo fato da apresentação ter sido um enorme sucesso de público. Estava tão eufórico com esse desfecho feliz, que nem me lembrei que precisava abastecer o carro, pois no longo trecho de estrada entre Guaratinguetá e Cunha, eu não havia visto nenhum posto de gasolina.
Falamos com um rapaz da produção do show, e ele franziu a testa quando lhe indagamos sobre um posto de gasolina aberto na cidade naquela hora. Não havia pensado que em uma cidade muito pequena, esse tipo de problema ocorre, de tão acostumado a viver em São Paulo, onde tal preocupação não existe. Solícito, o rapaz nos conduziu até a um posto, que já estava fechado, mas ao seu pedido, o frentista que jogava cartas com amigos, abriu a bomba e nos abasteceu. Mais um toque mágico que só Rockers sabem como funciona...
Voltamos para São Paulo extenuados, mas absolutamente tranquilos e felizes pelo sentimento de missão cumprida. Fora um sufoco, a gerar muita angústia da parte de todos, mas o resultado final fora tão reconfortante e compensador, que toda a agonia vivida esvaíra-se.
Aconteceu no dia 9 de janeiro de 2015, em Cunha-SP, uma belíssima cidade interiorana, que pelo pouco que vimos, contém os seus muitos atrativos naturais, fora a hospitalidade interiorana, típica e sempre prazerosa.
Nos meus cálculos livres, acho que havia cerca de trezentas pessoas na praça a nos ver, mas a tratar-se de um pequeno, porém charmoso boulevard, estava bem cheio. Ainda em janeiro, voltaríamos à nossa rotina de apresentações em casas noturnas, mas não necessariamente em São Paulo.
Continua...
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