segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Autobiografia na Música - Kim Kehl & Os Kurandeiros - Capítulo 101 - Por Luiz Domingues

Na reta final da turnê com Edy Star, a dita, "Toca Raul", haveria uma maior concentração de shows, e aí sim, teríamos a ideia mais aproximada de uma turnê verdadeiramente, visto que as datas anteriores foram esparsas. 

Desta feita, teríamos quatro shows concentrados no mesmo mês, dezembro de 2018 e a seguir a mesma dinâmica de visitar bairros distintos da cidade de São Paulo, entre si. 

Entretanto, haveriam duas novidades adicionais. A primeira, foi que doravante, os próximos shows pelas Casas de Cultura seriam em bairros mais próximos e não tão extremamente periféricos como houvera sido em relação aos anteriores. E a segunda nova, foi que haveria uma edição bem no centro da cidade, em um local nobre, o Teatro Olido. 

Ótimo ao pensar nos aspectos bons e ruins que tivemos nos anteriores, só poderíamos comemorar que não haveria a parte mais sofrida de ter que nos deslocarmos para os confins da extrema periferia de São Paulo e pelo contrário, só projetáramos que a parte boa, em ter contato com pessoas idealistas e amáveis que administram tais Casas de Cultura, haveriam por repetirem-se.

E assim, o próximo compromisso esteve marcado para ocorrer na Casa de Cultura de Santo Amaro. É longe do centro, certamente, mas não é periférico e assim, mediante o acesso muito facilitado e cercado por estações do metrô próximas, recheado por linhas de ônibus e por trem metropolitano, fez com que eu comemorasse, quando tomei ciência do seu endereço e mediante consulta prévia pelo Google Map, constatei estar encravado em uma bucólica praça com ares interioranos, em uma espécie de recuo estratégico da Avenida João Dias, uma famosa e movimentadíssima via do bairro.

Fácil demais para localizar, eu fui tranquilo para lá e assim que estacionei o meu carro em seu pátio, não muito grande mas funcional, vi o Carlinhos Machado a acenar-me. Ele já estava lá dentro e veio auxiliar-me prontamente para descarregar o meu equipamento e logo informou-me que não valeria a pena levar o equipamento para o salão onde o show ocorreria, pois apesar dele ser amplo, não haveria um camarim disponível ainda, visto que outros artistas estavam a usá-los com a programação a mostrarem-se lotada por diversas atrações e todas dispares entre si, a denotar ecletismo. 

Gosto dessa característica, certamente, pois verificar diferentes apresentações musicais e misturadas com trupes de teatro infantil e adulto, tudo no mesmo espaço e no mesmo dia, foi algo que demonstrou uma extrema boa vontade de seus curadores, para diversificar ao máximo a carta de opções culturais para os moradores do bairro. 

Nesses termos, quando eu cheguei, o Carlinhos informou-me que havia recém encerrado-se a apresentação de uma trupe de teatro infantil, denominada: "Ciclistas Bonequeiros", e de fato, enquanto conversávamos, víamos os artistas e seus contra-regras a carregarem o material do grupo para a van que usaram. 

Interessante, nesta altura, eu percebia que a nossa turnê estava dentro da mesma engrenagem a rodar pelas diferentes Casas de Cultura, pois tal trupe já havia apresentado-se em outra casa de Cultura onde nós atuamos também, a Casa de Cultura Itaquera/Parque Raul Seixas. Ou seja, que positivo foi constatar que não éramos só nós que estávamos a rodar pelo mesmo circuito.

E antes desses artistas do teatro infantil, um cantor de salsa havia apresentado-se, Fernando Ferrer, a corroborar o que salientei acima, sobre o caráter eclético dessa programação. 

Antes de nós, haveria uma peça teatral, denominada: "A Serpente". Bem, texto do Nelson Rodrigues, logo surpreendi-me por ver que apresentar-se-ia tal encenação às 18 horas e perante um público aparentemente desacostumado a lidar com um texto pesado dessa natureza e fora do ambiente tradicional de um teatro. 

Para agravar a minha estupefação, eis que verifico a existência de muitas senhoras com idade mais avançada, crianças e adolescentes no recinto. Rescaldo natural das atrações anteriores, claro que ficaram para assistirem a próxima atração, mas muitos ali, para não dizer a maioria, não sabiam o que aguardava-lhes, e assim, ao contrário dos meus companheiros que foram lanchar no bar da esquina, eu fiquei para ver, também por essa curiosidade de verificar como seria a reação das pessoas ali presentes e certamente para absorver um texto do Nelson Rodrigues, que é denso por natureza e mesmo que o teor sempre centrado na questão da perversão sexual, não seja em tese do meu inteiro agrado, eu acho muito interessante o aspecto da obsessão do autor em desmascarar através da sua dramaturgia, a hipocrisia da sociedade puritana. 

Bem, assim que os técnicos da trupe teatral sinalizaram estar tudo pronto, o produtor do espetáculo dirigiu-se à plateia e fez uma explanação sobre o teor da peça e exortou o aspecto de haver palavrões e muitas insinuações de atos libidinosos e até simulação de coito sexual na encenação e sendo assim, quem estivesse com filhos menores no recinto, que ficasse a vontade para retirar os menores dali e os preservar de constrangimentos. 

Muito bem, ninguém pareceu incomodar-se e algumas crianças e adolescentes ficaram no salão, devidamente autorizadas pelos seus pais e tampouco os idosos mais pudicos esboçaram incomodarem-se com a possibilidade de haver cenas chocantes. 

Não havia uma boa estrutura disponível, aquilo não era um teatro preparado com cenotécnica etc. e tal, mas assim mesmo com luz de serviço, a providência foi apagar uma parte da iluminação usual e deixar a luz provenientes das velas providenciadas pela produção do grupo teatral, para servir aos atores. 

Sob uma sonoplastia tétrica, com estridências a causar incômodo proposital para gerar um clima tenso, eis que os atores entraram em cena enfileirados e fortemente maquiados, quase a se parecerem fantasmagóricos. 

Mediante um tom de interpretação bastante nervoso, muitos gritos foram proferidos, com palavrões e situações a enfocar perversões sexuais dentro de uma determinada família fictícia e a culminar com um crime. Foi forte, achei que pesou naquele ambiente e perante a maioria ali despreparada para encarar um texto tão denso, e sobretudo pelas cenas com apelo sexual, mas foi o tal negócio, pelo lado estritamente cultural, considerei perfeitamente cabível a ideia de se encenar um texto do Nelson Rodrigues, gratuitamente para um público que raramente, ou mesmo nunca, fora a um teatro. 

Encerrada a apresentação e que deduzi não ter sido uma sketch, mas sim uma versão condensada da peça completa, os técnicos rapidamente desmontaram a pequena estrutura cênica que ali levaram e foi quando eu ouvi dois dos atores a passarem perto de minha pessoa e a combinarem entre si um horário para o seu encontro, no dia seguinte, visto que encenariam o espetáculo em outra Casa de Cultura, desta feita no bairro da Brasilândia, no extremo da zona noroeste da capital paulista. 

Bem, isso só reforçou tudo o que eu disse anteriormente, em tom de elogio à iniciativa salutar dessas Casas de Cultura, espalhadas pela cidade.

No autosoundcheck... Kim Kehl, Carlinhos Machado na bateria, Edy Star; Michel Machado, atrás e encoberto e eu (Luiz Domingues). Kim Kehl & Os Kurandeiros na Turnê "Toca Raul". Casa de Cultura Santo Amaro, em São Paulo-SP, no dia 1º de dezembro de 2018. Click: Lara Pap

Chegara a hora do nosso show, quando rapidamente montamos o nosso backline e o apoio do PA da casa foi muito simples. Com a ausência de um PA profissional, o que havia disponível ali foi algo compatível apenas para uma apresentação intimista e em um bar sob pequena proporção. 

Mas foi o que tivemos e assim resilientes por natureza, montamos o nosso backline já a deduzir que os instrumentos de cordas contariam apenas com a emissão de seus respectivos amplificadores e a bateria & percussão, soariam in natura. No minúsculo PA, apenas a vozes e com um agravante desagradável: sem monitores. 

Em suma, o remédio seria tocar bem baixo, a observar o limite da pequena emissão que as vozes ali teriam. Outra observação, a casa, assim como em outras que visitáramos, mostrava-se como um patrimônio antigo, com valor histórico acentuado. 

Por esse aspecto, foi uma maravilha constatar ser uma construção muito antiga, talvez a remontar ao século XIX e que ali houvera sido uma espécie de entreposto para pequenas caravanas com carroças etc. e tal. E pelo fato de possuir tais características arquitetônicas tão remotas, apresentou-nos um pé direito altíssimo, com uma estrutura de telhado muito antiga pelo estilo e que encantou-nos. 

Pelo lado prático e nocivo, logo deduzimos que a reverberação ali seria terrível e assim, foi mais um motivo para coibirmos o volume, ao máximo que pudéssemos.

No autosoundcheck... Kim Kehl, Carlinhos Machado na bateria, Edy Star; Michel Machado, atrás e encoberto e eu (Luiz Domingues). Kim Kehl & Os Kurandeiros na Turnê "Toca Raul". Casa de Cultura Santo Amaro, em São Paulo-SP, no dia 1º de dezembro de 2018. Click: Lara Pap


Fizemos um autosoundcheck um tanto quanto constrangedor, visto que o público já estava ali sentado a esperar-nos, mas nessas circunstâncias, foi inevitável. 

Começamos o show e mesmo sem uma iluminação mínima e um aparato de som nas mesma condições, fomos a conduzir o espetáculo com dignidade artística acima do esperado e quem for músico, ou mesmo artista de outra modalidade, há de entender-me bem, mas um fator foi crucial para o show deslanchar: o público não importou-se com as condições técnicas desfavoráveis e emitiu um entusiasmo que reverberou de primeira em nosso combalido ânimo. 

Portanto, com a sinergia ali estabelecida, o show deslanchou. Haviam alguns fãs do Raul Seixas ali e claro que isso ajudou-nos sobremaneira. 

E foi um contraste com a fala de um senhor oriundo da organização local, que imbuído de boa vontade, embora completamente desinformado sobre o teor do nosso espetáculo, anunciara ao público, antes mesmo da peça teatral iniciar-se, que: -"Edy Star, um cantor, interpretaria as canções do Raul Seixas". 

Não totalmente falaciosa tal afirmação, mas na verdade a revelar-se uma informação bastante incompleta, Edy não era um cantor "cover" do Raul Seixas, tampouco um cantor qualquer que resolvera homenagear o Raul, mas um companheiro do Raul em vida e que inclusive, ambos conheciam-se muito antes da fama artística adquirida por ambos, lá na Bahia, nos idos de 1955... bem, ninguém é perfeito, o bom homem não fez por mal.

No camarim, a oportunidade para posar a visar uma foto promocional da turnê... Michel Machado, Kim Kehl, Edy Star e eu (Luiz Domingues) e Carlinhos Machado. Kim Kehl & Os Kurandeiros na Turnê "Toca Raul". Casa de Cultura Santo Amaro, em São Paulo-SP, no dia 1º de dezembro de 2018. Click: Lara Pap

Encerramos com bastante euforia e até acima da mais otimista das nossas previsões e ficamos felizes pela recepção calorosa das pessoas. E também por termos feito um espetáculo com bastante sacrifício, ante as adversidades técnicas ali presentes. 

Ao final, o senhor responsável pela Casa, veio pedir-me desculpas pela falta de estrutura técnica e ao mesmo tempo a elogiar-nos, salientou que o nosso trabalho merecia ser apresentado em um teatro com boa infraestrutura de som e iluminação etc. Foi muito digno da parte dele, mas eu disse-lhe que não precisava desculpar-se, visto que a falta de estrutura ali certamente não fora por sua culpa, mas motivada pelos desmandos do poder público municipal e que pelo contrário, eu reconhecia o esforço dele e de sua equipe, haja vista as atrações que ali apresentaram-se naquela tarde. 

Se faltou estrutura material, não faltou boa intenção e boa vontade para manter a Casa com um padrão de atuação frenética, com tantas atrações arroladas e todas com ótimo nível artístico. 

Foi assim, em 1º de dezembro de 2018, na Casa de Cultura de Santo Amaro, na zona sul de São Paulo-SP. Missão cumprida e para a nossa alegria, a próxima etapa estava marcada para o dia seguinte, na Casa de Cultura do Butantã, na zona sudoeste da cidade. 

Continua...

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