sexta-feira, 19 de junho de 2015

Autobiografia na Música - A Chave do Sol - Capítulo 331 - Por Luiz Domingues

Reinávamos naquele casarão já a partir de setembro, a ensaiar a todo vapor, para conceder entrevistas (já falei sobre duas delas, e que foram frutos de nossos esforços, e não do escritório, é bom frisar), a aproveitar as benesses da estrutura, incluso a discoteca, ali disponível.

Nesse aspecto, o fato do Miguel ter sido um radialista de sucesso, e ter sido também um executivo de gravadora e dono da empresa "Clube do Disco", pesou na construção de uma bela discoteca, e fôramos incentivados por ele mesmo a usufruir do acervo gigantesco, através de numa sala de audição com um equipamento Hi-Fi de primeira linha etc. Claro que isso foi sensacional.

Café, lanches, e afins também eram servidos a vontade. Havia uma faxineira e a secretária pessoal do Miguel, agia como governanta da casa, a cuidar de sua limpeza, organização e funcionamento da cozinha. Esta chamava-se: Maria Amélia, uma mulher de meia-idade, mas com uma jovialidade bem preservada em sua cútis. De fato, logo soubemos que ela fora Miss Santos nos anos 1950 (acho que no ano de 1955, salvo lapso de minha memória), portanto, quando jovem, deve ter sido muito bonita. 

Dava para ter uma noção disso, ao observar a sua filha adolescente, uma menina que aparentava ter cerca de treze ou quarenta anos de idade, e que era belíssima, mas prudentemente, logo notamos que sua mãe a orientou a não nos dar atenção. Essa menina vivia a fugir pelos cantos quando nos via, e claro que ficou clara a orientação materna nesse sentido. Particularmente, eu não acho errado que um pai ou mãe tome certos cuidados com filhos nessa idade, principalmente se forem do sexo feminino...
O Beto sempre foi extrovertido ao extremo, e brincalhão. Ele era assim com qualquer pessoa, era o seu jeito pessoal de ser e agir. Pois então, logo pôs-se a inventar apelidos para todos naquela casa, e a Dona Maria Amélia, no caso, tornou-se: "Mamé", uma intimidade que a assustava, com certeza, mas com a qual teve que se acostumar. 

Porém, dava para sentir no seu semblante que aquilo era incômodo para ela, e a apavorava em relação à filha. Esta por sua vez, obedecia a mamãe, e nos evitava, mas ficara nítido que devia achar o máximo o convívio com uma banda de Rock, mediante quatro cabeludos ali presentes, e isso se manifestava quando íamos ensaiar e ela dava um jeito de ficar na técnica a assistir, toda vez que a sua mãe estava ocupada em uma reunião com Miguel, por exemplo.

Miguel era um gentleman. A sua postura era a de um Lord inglês, com modos refinados, linguajar sofisticado, e até um certo exagero no se portar, mas particularmente eu admirava essa sua educação milhas acima do brasileiro médio. Eu e o Rubens, aliás, que também admirava esse grau de educação cavalheiresca de outrora. Beto e Zé Luiz, que tinham personalidades bem mais despojadas, achavam-no empolado demais.

O consorte de Sonia, Toninho Ferraz, era um rapaz bem mais jovem do que ela, e muito falante. Ele demonstrava uma esperteza muito grande e parecia fazer o contraponto ao Miguel aristocrático. Ele sabia se portar de forma educada, naturalmente, mas havia interiormente em sua personalidade, uma disfarçada malandragem de rua em sua personalidade, e claro que essa característica diametralmente oposta poderia somar, ao agregar em outros aspectos.

A estrutura e os grandes contatos eram do Miguel, com Sonia e Toninho a cumprir o trabalho mais braçal da produção. Eles seriam produtores diretos do cotidiano, praticamente a função de um Road Manager, ao cuidar do gerenciamento da carreira e ao agregar os seus contatos de Teatro e TV, eventualmente, e o Miguel, entraria com seu prestígio na mídia radiofônica e televisiva, mas principalmente nos meandros da indústria fonográfica, onde ele fora um executivo, e conhecia de fato muita gente poderosa.

Haveria uma possibilidade a mais nessa equação, mas isso revelou-se mais um delírio, do que uma realidade. O Toninho se apresentava como artista plástico e daí, dizia ter muitos contatos nessa área também, e que isso poderia agregar. Lógico que poderia em tese... quisera eu ser amigo do Salvador Dali e ter sua arte e presença física sempre por perto, quiçá a colaborar diretamente com a parte visual dos shows, material gráfico, capas de discos, ou no mínimo, a nos ceder o seu prestígio social que não abria, mas escancarava portas...

No caso do Toninho, ele se auto-definia como um artista fechado no estilo: "Quixotesco". Eu aprecio as artes plásticas, aliás sempre gostei, mas fiquei confuso quando o ouvi falar sobre isso, pois desconhecia que houvesse uma escola estética com tal denominação. Claro, eu nunca fui um grande conhecedor da história da arte e a saber com desenvoltura sobre todas as suas escolas estéticas, no entanto, o estilo "quixotesco", eu realmente estranhei quando o ouvi afirmar isso.
Ele disse que só produzia "Quixotes", ou seja, todas as suas obras eram motivadas por um único mote: a figura do personagem criado por Cervantes, Dom Quixote. De fato, ele nos mostrou pinturas, desenhos e várias esculturas com tal inspiração, apesar de acharmos aquilo estranho, pois é no mínimo esquisito um artista que se declara fechado em uma única ideia de criação.

Logos nos primeiros dias, ele prometeu preparar gravuras de "Quixotes" para cada um de nós, no entanto, apenas o Rubens recebeu efetivamente uma peça, que levou para o seu pai ornar o seu gabinete de trabalho, visto que o Dr. Rafael Gióia Junior, admirava o personagem de Cervantes.
Eles prometiam-nos "mundos & fundos", e respaldados pela estrutura toda que ostentavam, somada aos contatos que diziam ter, tais conquistas representariam para eles, praticamente favas contadas que nos fariam "estourar" no mainstream, em questão de pouco tempo. 
Conforme eu já disse, estavam empolgados com o nosso progresso conquistado sem a interferência deles, e nos consideravam uma pedra semi-lapidada, só a precisar de poucos ajustes para ser valiosa de fato, no mercado. E isso se reforçara à medida que outros compromissos não paravam de aparecer espontaneamente. 

O telefone não parava na casa do Rubens, e agora nós só transferíamos tudo para eles, ingenuamente eu diria, pois além da estrutura física do estúdio, e poucos contatos de mídia que eles arrumaram, tudo o que estava a explodir em nossa órbita, fora fruto de nossos próprios esforços ao longo de quatro anos de atividades árduas de nossa parte.

Pois deveríamos ter testado mais o poder de fogo real deles, mas caímos nas suas bravatas, com a ressalva de que estávamos tão bem naquele instante, que foi realmente difícil acreditar que não chegaríamos ao nosso objetivo, que seria o mainstream da música.

E nesse ínterim, teríamos mais três shows em setembro. Todos frutos de nossos esforços, mas já fechados com o escritório, e assim, a contrair a obrigação de darmos uma taxa muito robusta para eles... 

Continua...

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