Como já expliquei no capítulo anterior, relatarei agora dois casos ocorridos mais ou menos entre abril e junho de 1983, mas sem uma data precisa que eu possa mencionar com exatidão. Em ambos, ocorreram desdobramentos, ao torná-los portanto, não fatos únicos de um dia, ou de um momento apenas. Vamos aos fatos : Na primeira ocorrência, recordo-me que o Zé Luiz chegou um dia no ensaio da banda para dizer que um conhecido seu, que não via há tempos, o encontrara, e sabedor que o Zé Luiz estava com uma banda autoral e na labuta, propôs um intercâmbio com a banda que ele estava a tocar, e que também mostrava-se imbuída pelo trabalho autoral. Naquela altura, a viver os dias amargos do Pós-Victória Pub e ao voltarmos à realidade da "terceira divisão" da música, toda ideia nova que surgisse, seria válida e desta forma, por quê não considerar a proposta ?
Dessa forma, o Zé Luiz repassou o nosso interesse oficial por uma conversa preliminar com o rapaz, e verificarmos assim, como nossas respectivas bandas poderiam colaborar uma com a outra. O rapaz veio acompanhado de seus companheiros ao nosso ensaio, e ficamos com uma boa impressão dele e dos demais. Aparentavam ser um pouco mais novos do que nós, e sem dúvida tinham o sonho em dar certo na música, como nós, a nortear os seus esforços. O único senão nessa equação, foi o fato deles definir-se como uma banda "Punk", o que naquela época era bastante discrepante com a nossa proposta artística e vice-versa.
Mas, a relevar essa questão estética, e pelo contrário, a valorizar o fato dos rapazes ser jovens educados, com boa formação cultural e articulados, não havia nenhum cabimento em rejeitarmos a proposta de ajuda mútua, apesar da suposta disparidade das respectivas propostas artísticas. Poderia haver no entanto, reações negativas por parte de terceiros, pois ali no meio do furacão oitentista, a ultra segmentação de tribos foi uma realidade indiscutível, e dentro dessa perspectiva sob animosidades radicais, não seria recomendável que uma banda Punk apresentasse-se no mesmo show com uma banda formada por cabeludos hippies, com nítida orientação setentista, por motivos óbvios, e de nada importaria dizer aos radicais xiitas, que as bandas eram amigas, e respeitavam-se mutuamente, e para ir além, tinham pacto de colaboração. Mesmo assim, alheios aos perigos que poderíamos enfrentar em situações desse nível, prosseguimos a encontrarmo-nos e planejar ações.
Uma primeira oportunidade surgiu quando o Rubens arrumou um contato de um salão localizado no bairro do Sacomã, próximo ao Ipiranga, na zona sudeste de São Paulo. Tal salão estaria por abrir as portas para bandas autorais e do mundo underground, apresentar-se. Naquela circunstância em termos perdido a nossa ótima vocalista, Verônica Luhr, e o embalo construído ao longo de meses a tocar em casas noturnas, precisávamos reinventarmo-nos, e bem rapidamente, portanto, buscar espaços alternativos onde pudéssemos fazer shows autorais, sobretudo, e não em casas noturnas tendo que tocar covers, pareceu-nos ser um caminho sob curtíssimo prazo para reerguermo-nos. E como estávamos em uma colaboração com tal banda do guitarrista amigo do Zé Luiz, claro que tentamos inseri-la nessa perspectiva do tal salão rústico, do bairro do Sacomã.
Fomos lá para conhecer o espaço, e a viabilidade em marcarmos um show, em um dia de semana a tarde. Era realmente um lugar muito rude, em uma avenida com forte circulação de caminhões de carga, pois nos arredores, notamos a presença de muitos galpões de transportadoras etc.
O sujeito que atendeu-nos foi uma figura sem muitos recursos educacionais e culturais, nitidamente. Tratou-se do dito "mal articulado" e dessa forma, a abordagem foi muito prejudicada pelo fato da conversação não encontrar eco, digamos assim, para não ofender ninguém. O pessoal da banda amiga também não apreciou a conversa e então, saímos dali convictos de que não aconteceria nada e convenhamos, duas bandas autorais desconhecidas a fazer show em uma espelunca daquelas, e super mal localizada, tinha tudo para ser um fiasco.
Nessa circunstância, teria sido muito diferente tocar em uma espelunca como o Devil's Bar, no sentido de que se a infraestrutura mostrara-se péssima, igualmente, pelo menos o Devil's localizava-se na rua 13 de maio, onde o agito costumava ser mastodôntico na noite paulistana, ao contrário desse salão remoto, que mais parecia-se com um galpão do Ceasa. Todavia, um fato muito curioso ocorreu nessa visita ao tal salão. Quando já estávamos de saída, ouvimos o som de uma banda a tocar. Foi quando descobrimos que anexo ao salão, havia uma sala de ensaios, ainda que bastante improvisada à moda antiga, com a clássica vedação precária mediante caixas de ovos a forrar as paredes, e ausência de ar condicionado. Portanto, só descobrimos que havia uma banda a ensaiar ali, quando naturalmente, seus integrantes não aguentaram mais ficar trancafiados naquele calor e fumaça, pois naquela época, ninguém cogitava em parar de fumar, mesmo em condições insalubres para tal prática, como essa.
Aproximamo-nos e fomos convidados a assistir um pouco o ensaio da banda em questão, que chamava-se : "Crisálida". E o baixista desse "Power-Trio", era uma figura conhecida no metiér do Rock Paulistano, por ter sido baixista de uma banda que quase ficou famosa nos anos setenta, chamada : "Rock da Mortalha". Seu nome era : Orlando Lui.
Eu inclusive cheguei a assistir um show dessa banda (Rock da Mortalha), em 1978, com bastante público, e ao ar livre, no Boulevard da estação São Bento do Metrô, e minha lembrança desse show foi de que o som deles assemelhara-se bastante ao Black Sabbath, pela densidade e peso. Enfim, o "Crisálida" que ali ensaiava, fazia um som ultra setentista, na linha do Rush, incisivamente, e era ainda mais anacrônico que A Chave do Sol, para aquele ambiente oitentista hostil a tais manifestações explicitamente simpáticas às estéticas do passado.
Pelo pouco que ouvi e vi naquele ensaio, os rapazes tinham um som consistente, muito bem tocado etc e tal, mas mostrava-se um som sem chance alguma para o momento oitentista, até mesmo em termos underground.
Algum tempo depois, A Chave do Sol conviveria bastante com o Orlando Lui, por outras situações e inclusive, esperto, ele também tentou adequar-se ao mundo oitentista, quando buscaria alojar-se com outra banda, mas no mundo do Heavy-Metal. Relatarei tudo na cronologia adequada. Para encerrar, falei sobre muitas coisas e deixei um suspense sobre quem seria essa banda Punk, amiga. A banda, de fato, nunca fez nada significativo, e logo encerraria atividades. O nome dessa banda, era : "Ignose". Apesar desse acordo de cooperação, de nossa parte, essa tentativa no salão medonho que visitáramos, não deu em nada e da parte deles, também nada deu certo, e seus contatos eram apenas sobre bares ainda mais underground dos que A Chave do Sol tinha tocado nos primeiros meses de existência. Após mais alguns telefonemas, o nosso contato dispersou-se, e nunca mais falamo-nos.
Contudo, dois anos e tanto depois, tomamos um susto quando vimos que uma banda, dessas que tinham título de sigla (essa tendência seria uma febre entre os seguidores da onda Pós-Punk), e possuíam sonoridade de plástico, com os seus membros a usar visual de dândis e a fazer caras & bocas como artistas metidos a "avant-garde", estava a ensaiar uma situação de mega exposição midiática.
Sabíamos de sua existência já desde 1984, mas era só mais uma banda com nome de sigla a tocar no "Madame Satã", e casas similares que promoviam artistas dessa seara do Pós-Punk.
Foi quando vimos um show ao vivo, no estacionamento da loja de departamentos, "Mappin", no bairro do Itam-Bibi, muito próximo da residência do Rubens, onde ensaiávamos regularmente. O Zé Luiz reconheceu o guitarrista imediatamente dessa banda, assim que eles subiram ao palco, e foi mesmo o seu amigo que tocava guitarra no "Ignose", em 1983 !
Seu nome era Fernando Deluqui, e sua nova banda que decolava era um tal de RPM...
Logo mais, conto a segunda história curiosa que ocorreu também nesse período entre abril e junho de 1983.
Continua...
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