quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Autobiografia na Música - Língua de Trapo - Capítulo 109 - Por Luiz Domingues


E a temporada no Teatro Lira Paulistana prosseguiu. No dia 19 de abril de 1984, cento e cinquenta pessoas assistiram o show; no dia 20, duzentas e cinquenta pessoas. Trezentas e vinte entraram no teatro, dia 21 de abril. E para encerrar essa semana, tivemos dois shows no dia 22 de abril de 1984, um domingo. com cinquenta pessoas na primeira sessão e oitenta pessoas na segunda. Foi inexplicável esse resultado fraco para os nossos padrões habituais. Foi um domingo atípico, sem que houvesse uma explicação plausível para o fraco movimento nas duas sessões. Mas nada que  abalasse-nos, pois na semana subsequente, as coisas melhorariam, a não ser pelo show da quarta-feira, dia 25 de abril de 1984... 

Para quem viveu a época, há de lembrar-se que estávamos nos últimos estertores de um regime pesado, e embora nesses momentos finais houvesse uma perceptível frouxidão do sistema, ainda existia a sensação de insegurança. E naquele momento específico, os movimentos populares pró-eleições diretas para presidente da república, estavam a borbulhar. Como já narrei aqui, o Língua de Trapo estava no Rio de Janeiro durante a histórica manifestação popular na Candelária, e em São Paulo, semelhante manifestação ocorrera na Praça da Sé. Dessa forma, o clima geral fora sob apreensão, onde deduzia-se que os radicais antipáticos às mudanças, reagiriam em qualquer instante. Pois no dia 25 de abril de 1984, por volta das 18:00 horas, um Blackout deixou São Paulo às escuras. 

Eu estava saindo do ensaio d'A Chave do Sol, na residência do Rubens Gióia, e dirigia-me ao Teatro Lira Paulistana para a apresentação daquela noite. Minha intenção fora usar um ônibus que levar-me-ia direto ao Teatro Lira Paulistana, sem problemas, mas o trânsito ficou caótico sem os semáforos e por temer atrasar-me, resolvi chamar um táxi, mesmo por que, estava com o meu baixo em mãos e às escuras, tornara-se muito perigoso ficar na rua sob tais circunstâncias. Em uma primeira análise, achei que seria um Blackout localizado, apenas ali no bairro do Itaim Bibi, zona sul de São Paulo, mas no táxi, a ouvir o rádio, eu e o taxista tomamos ciência que não só a cidade inteira estava sem energia, mas também o estado e pior ainda, a região sudeste, inteira. 

Uma retaliação dos antipáticos à pressão popular pela redemocratização do país ? Foi a explicação mais plausível e certamente a desconfiança tomou conta de todos, ao pressentir-se uma nova etapa de endurecimento, e mais atraso para o país. Ao chegar ao teatro (com muita dificuldade, pois o trânsito ficara caótico), a preocupação de todos foi visível por esse evento, com o evidente sabor de pressão política. Independente disso, tínhamos o show para fazer e na perspectiva em não ser restabelecida a energia, o Laert propôs algo inusitado, para não cair na mesmice de um cancelamento pura e simplesmente. Então, em comum acordo com a direção do Teatro Lira Paulistana, cancelou-se a venda de ingressos e convidaram as pessoas que compareceram, a prestigiar um show intimista na base da voz & violão, e deixar as pessoas a vontade para doar qualquer quantia em dinheiro, se quisessem, mediante o recolhimento com um chapéu, de uma forma romântica, ao agirmos como menestréis... 

E o show aconteceu, mediante o auxílio de velas. Eu não participei, pois sem energia elétrica, não seria possível tocar baixo, e minha participação em um show acústico e improvisado, seria mínima.
Lembro-me em ter feito uma discretíssima percussão e nada mais, e ter sido uma figura inútil naquela engrenagem sob improviso. E o repertório seguiu esse padrão, mais com o Serginho Gama a tocar e Laert e Pituco a cantar, incluso músicas mais antigas do repertório, fora do Set List habitual, naquele tempo. E claro, nada do show tradicional pôde ser encenado, ao ficar a expectativa para que a situação normalizasse-se na quinta-feira. 

A energia voltou muitas horas depois, a votação do projeto de Lei para restituir a prática das eleições diretas para presidente da república fracassou e ainda teríamos alguns anos para alcançar esse direito. Quanto ao Blackout, o governo forneceu uma explicação técnica mequetrefe e ficou por isso. Por incrível que pareça, oitenta pessoas compareceram ao teatro, com Blackout e tudo, nessa quarta-feira, dia 25 de abril de 1984.


Continua...

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