quarta-feira, 8 de julho de 2015

Autobiografia na Música - Pitbulls on Crack - Capítulo 104 - Por Luiz Domingues

Com o pessoal do Golpe de Estado, o convívio foi sempre fraternal, é claro. E o pessoal d'Os Inocentes e do Ratos de Porão, também eram bacanas. Quando deram-nos aviso que em breve iniciar-se-ia o show, pedimos para um de nossos roadies, o meu aluno, Ricardo Schevano, ligar o stand-by dos amplificadores e dar uma checada na bateria e mais uma tarefa, que foi de ordem de detalhe cênico: colocamos muitos incensos em cima dos amplificadores e praticável de bateria, e muitos ramos de flores frescas que compráramos em uma floricultura, naquele mesmo dia.

O conceito "Peace and Love", fazer-se-ia presente perante um público agressivo e avesso, para fazer jus ao aparato de lançamento de nosso disco, contudo, não estávamos a atuar no Festival de Monterey de 1967, infelizmente.

Quando o Ricardo subiu ao palco e acendeu os incensos, passou meio batido para aquele mar de garotos de camisetas pretas com estampas as mais abomináveis, mas ele quando trouxe os ramalhetes de flores e colocou-os sobre os amplificadores...
 

Uma vaia muito intensa foi ouvida por nós, que chegou ao camarim, e pior, seguida de um coro típico de estádios de futebol, a mexer diretamente com ele, na questão de sua sexualidade.

Hoje em dia, o Ricardo está acostumado a tocar em estádios de futebol lotados, para mega plateias, ao pilotar o seu baixo no "Baranga" & "Carro Bomba", e domina qualquer público sem esforço, mas naquela época, ainda muito jovem e inexperiente, ficou bastante chateado com essa provocação e chegou bastante contrariado ao camarim, a dizer-nos que nunca mais faria essa tarefa, e que deveríamos contratar outra pessoa para tal etc.

Claro, além dos apupos da polateia ele também foi alvo das pilhérias automáticas dos humoristas do Pitbulls on Crack. Depois ele acalmou-se e trabalhou normalmente durante e após o show e deu risada do bullying coletivo, que sofreu da parte de cerca de três mil garotos. 

Enfim, chegou a hora de subirmos ao palco e começarmos. Algumas poucas provocações foram ouvidas só por aparecermos no palco, mas nada acintosamente que caracterizou uma ação sob  baixo astral. Até em shows tranquilos, a qualquer momento poderia surgir uma manifestação inconveniente. Sempre há um sujeito doidão, bêbado ou disposto a ter os seus quinze "segundos", nem minutos, de fama...

Raríssima foto desse show ocorrido no Palco da Represa. Acervo e cortesia de Jason Machado  

Começamos a tocar e aparentemente o público uniformizado com camisetas pretas (impressionante e sintomático, é claro), estava a respeitar-nos, sem hostilidades. Foram duas, três, quatro músicas e estivemos até surpreendidos pela falta de manifestações nesse sentido, e até pelo contrário, ao final de cada música, palmas, ainda que bem esparsas, foram ouvidas e muitos meninos a nos sinalizar com aquele ridículo sinal de "malocchio", claramente como uma demonstração de apoio à banda, devo reconhecer. 


No meio do show (claro, o nosso set list foi curto, mediante aproximadamente quarenta e cinco minutos, sob um padrão de banda "open act"), subitamente, uma latinha de refrigerante voou do meio da plateia e caiu no palco.

Olhei para trás e vi o Juan Pastor a rir, pois ficáramos dias a imaginar que seríamos alvo de uma chuva de latinhas. Claro que se uma lata foi arremessada, na melhor tradição do "atirar a primeira pedra e atiçar o apedrejamento", deu margem ao pior....
 

Outras começaram a ser arremessadas, e chegou-se em um ponto, onde ficou assustador, pois o volume ficou grande e algumas, vinham pesadas, com o líquido quase todo em seu interior, onde certamente a intenção de seus respectivos arremessadores, foi a de atingir o alvo, com o objetivo de machucar os artistas ali presentes, no caso, nós.

Perdoem-me, mas tolerância à parte, nesse quesito eu não consigo concordar com esse tipo de atitude e por favor, poupem-me de contra-argumentações sobre o "desconstrutivismo iconoclástico pós-moderno" ou qualquer outra imbecilidade travestida de um suposto sentido estético/comportamental. Posso ser um hippie démodé, mas ainda acho que se não gosto de um artista, retiro-me do local e não tento agredi-lo, ora, ora...


Por um verdadeiro milagre, nenhuma lata atingiu nenhum membro da banda. Algumas passaram perto e houve um auge dessa saraivada, que mesmo ao continuarmos a tocar, e nunca deixarmos de tocar, foi possível para ouvir o som do zunido de tais bólidos a passar por nós, e a bater nos pedestais de microfone, amplificadores, praticável de bateria, e caixas de monitoração. 

Como continuamos a tocar e rir da situação (foi o Pitbulls on Crack, ora...), o ataque diminuiu e parou, com a banda a chegar a tocar mais uma ou duas músicas, não recordo-me com precisão. 

Pasmem! O público ao final aplaudiu e aumentou muito o número de garotos que ergueram as suas mãos para saudar-nos com o abominável "malocchio" (aquela imbecilidade de associar o Rock a um sinal que remete a uma manifestação oriunda da Idade Média), mas claro, eu entendi que foi a forma "carinhosa" de expressar que haviam gostado, talvez não de nossa música, mas da atitude de continuar a tocar e não retaliar o ataque de latinhas. Vá entender o raciocínio e visão ética desse tipo de garoto daquela época?


Então, eu não resisti e a viver aquela loucura idiossincrática de resgatar os valores que amava, forcei uma barra, a aproveitar-me desse momento ameno, fiquei com os dois braços erguidos, a fazer o sinal de "Peace and Love", a correr o risco, mesmo. Eu já estava convencido de que aquilo não soaria como uma provocação, pois foi claro que aquela garotada de 1997, nem sonhava com as implicações ideológicas de 1977. 

E surpreendentemente, muitos começaram a repetir o meu sinal. Pouco importava se entenderam a implicação de tudo isso. O importante, foi que apesar de tudo, o Pitbulls on Crack saiu respeitado do palco, apesar do ataque gratuito, e aquelas centenas de mãozinhas a fazer o sinal de "peace and love", valeu-me, naquela tarde.

Assistimos boa parte do show do Golpe de Estado, e quando a produção estava a mudar o palco para o set up dos Ratos de Porão, nós desmontamos a nossa tenda hippie e embarcamos na van, para voltar para a casa. Já era noite adentro quando partimos e toda essa história ocorreu no dia 26 de abril de 1997, um sábado. 

Cerca de três mil pessoas estiveram presentes no "Palco da Represa", a assistir esse micro festival. Curiosamente, ainda haveria um lampejo de oportunidade gerida pelos contatos do Juan Pastor. Seria o penúltimo, de uma longa série iniciada em 1992.

Foram os últimos momentos do meu tempo com o Pitbulls On Crack...


Continua...
 

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