domingo, 31 de maio de 2015

Autobiografia na Música - A Chave do Sol - Capítulo 304 - Por Luiz Domingues


Foi a partir de 1983, quando paralelamente à minha atuação com A Chave do Sol, eu voltei ao Língua de Trapo, que eu comecei a tomar contato mais direto com músicos que gravitavam no mundo do Punk Rock, pelo fato do Língua ter ligação estreita com o Teatro Lira Paulistana, onde muitos desses artistas dessa seara gravitavam também, e por conta do Língua ter gravado o seu primeiro disco pelo selo mantido pelo Teatro.

Por ser um espaço absolutamente democrático e eclético, o Lira não foi apenas a casa daquela cena chamada: "Vanguarda Paulistana", mas igualmente de diversos estilos, artistas, nichos e tribos. Nesse contexto, foram comuns as apresentações de bandas orientadas pelo Punk Rock, Pós-Punk e de seus derivados.

Então, foi ali ao final de 1983, e durante o transcorrer de1984, que eu comecei a conhecer vários artífices de tal movimento e de fato, estavam na crista da onda, porque a cena oitentista era dominada predominantemente por tais tribos.

Outro fator preponderante, foi que o técnico de som do Lira Paulistana, e que operou quase todos os shows que o Língua fez ali com a minha presença e que já operava na fase em que eu estive fora da banda anteriormente, foi o Canrobert Marques, que eu já citei bastante no capítulo do Língua de Trapo, e aqui mesmo, no d'A Chave do Sol. 

A relembrar o que eu já falei vários capítulos atrás, o Canrobert era um punk raiz, que aderira ao movimento desde o fim dos anos setenta e estava dentro do seu epicentro, pois era o técnico predileto de seus principais expoentes brasileiros, tais como Os Inocentes, Cólera e Ratos de Porão. Como ficamos muito amigos por conta do Língua e ele era um rapaz de mente aberta e mesmo a se considerar punk, gostava de Classic Rock e muito de Rock Progressivo (apesar de esconder isso de seus amigos punks mais radicais que adotavam a cartilha de ódio ao passado, ditada pelo execrável Malcolm McLaren).

Ele concordava com as ideias do movimento enquanto contestatório e anti-establishment, mas na parte da estética, mesmo a saber ser antagônico, e um tabu entre os seus seguidores, ele gostava de música refinada, mesmo por que, como técnico, tinha o apuro musical e sabia distinguir entre o que era tosco ou sofisticado, é evidente. Por conta dessa amizade firmada com ele, graças ao Língua de Trapo em uma primeira instância, ele também se tornou um amigo d'A Chave do Sol e apreciou o nosso som, por ter nos operado a partir de 1984, em todas as ocasiões em que tocamos no Teatro Lira Paulistana. E posteriormente, Canrobert operou a nossa banda em outros lugares, incluso fora de São Paulo, como já contei em capítulos anteriores.

E como era entrosado com os punks mais salientes da cena brasileira, foi através dele que conhecemos o pessoal d'Os Inocentes, Ratos de Porão e Cólera.

Lembro de ter sido apresentado ao Clemente, vocalista e guitarrista dOs Inocentes, ainda ao final de 1983, no escritório do selo Lira Paulistana. Nessa ocasião, ele falou animadamente sobre os shows que acabara de cumprir no Rio de Janeiro, com o Circo Voador abarrotado de gente etc. Muito expansivo e descontraído, deixou-me a impressão de ser um sujeito de boa índole, apesar de nós vivermos em mundos, onde teoricamente éramos antagonistas.

No entanto, fomos a firmar amizade e se poderia haver algum preconceito sobre o comportamento do punk padrão de sua parte, percebia, por observação direta, que para o Clemente e em outras figuras do punk, havia uma tolerância bem maior do que eu imaginava, em relação à tradicionalistas como eu, de cabelos longos e paixão pelo classic Rock 1960/1970. O máximo que ouvi de "ofensivo" da parte dele, foi que ele havia tornado-se punk, por que ficara saturado do Led Zeppelin, que gostara um dia...

Fiquei amigo também do Redson, líder do Cólera, que era um punk "gentleman". Por trás daquela casca de tosquice que o arquétipo do punk padrão sugeria, havia um rapaz tranquilo, praticamente a demonstrar um comportamento zen. Era um pacifista convicto, idealista de um mundo melhor, e mais justo. Curioso... com tais ideais, era um hippie na verdade, só a faltar-lhe assumir-se como tal, e deixar a cabeleira crescer...

Quanto ao João Gordo e o pessoal do Ratos de Porão, nunca nos aproximamos de fato, ao ficarmos apenas em cumprimentos fortuitos nos bastidores em geral. Bem, assim que A Chave do Sol também passou a gravitar na órbita do Teatro Lira Paulistana, e cair nas graças do Can Robert (e vice-versa), ficamos mais próximos d'Os Inocentes. 

Sobre, Os Inocentes, os seus membros foram em peso assistir os nossos shows no Teatro Lira Paulistana, algumas vezes, e nós os vimos também em algumas ocasiões. Uns não gostavam da estética exercida pelos outros, mas nos apoiávamos pela amizade e bom relacionamento construído dentro dessa camaradagem sincera.

E assim o tempo pôs-se a passar e claro, apesar do Punk ter deflagrado a explosão do Pós-Punk, por motivos estéticos e mercadológicos, foram os seus filhotes que foram parar no mainstream exatamente por serem mais palatáveis ao mundo fonográfico e midiático.

No entanto, foi só uma questão de tempo para o Punk, propriamente dito, também embarcar na oportunidade do mainstream e assim, Os Inocentes fecharam enfim com a gravadora multinacional, Warner, em 1986. Tal banda já era consolidada no patamar underground , dentro de seu nicho, mas agora, partiriam para uma aventura na primeira divisão da música, e entrariam em estúdio, no Mosh, o mesmo estúdio onde gravamos o nosso primeiro disco, em 1984. Então, o Clemente nos fez um pedido, que prontamente aceitamos pela nossa amizade firmada há tempos... 
Continua... 

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