sexta-feira, 22 de maio de 2015

Autobiografia na Música - Trabalhos Avulsos (Koveiros em Missões Nada Glamorosas) - Capítulo 82 - Por Luiz Domingues

Os Kurandeiros de Kim Kehl mostravam-se ecléticos já há algum tempo, quando de suas fileiras, saiu a base da banda de apoio de Ciro Pessoa: "Nu Descendo a Escada". Isso houvera reforçado-se, quando em abril de 2014, o baterista dos Kurandeiros, Carlinhos Machado, também passou a fazer parte dos "Nudes", sob uma convite de Ciro Pessoa. 

Entretanto, anteriormente, em janeiro desse mesmo ano, os Kurandeiros também haviam assumido um segundo desdobramento, ao juntar-se ao tecladista, Alexandre Rioli, e daí formar-se a Magnólia Blues Band, um combo de Blues pronto a acompanhar grandes personalidades da cena do Blues brasileiro, em um evento fixo e denominado, "Quarta Blues", na casa de espetáculos, Magnólia Villa Bar, de São Paulo. 

Mas como loucura é bobagem, como diziam os Mutantes, um terceiro e muito inusitado desdobramento poderia ocorrer a qualquer momento, e já na metade do ano de 2014, tais oportunidades extras, apareceram.

Através do tecladista/gaitista e vocalista, Claudio "Cazão" Veiga, duas datas para cobrir duas festas distintas, surgiram, e nesse caso, o objetivo foi reunir um combo sem nenhum comprometimento artístico, que prontificasse-se a tocar um repertório baseado no material dos Rolling Stones, e do Creedence Clearwater Revival, predominantemente, sem escrúpulos, simples assim. 

Mediante consulta, o Kim lançou essa proposta para que eu e Carlinhos Machado a avaliássemos. Fazia anos que eu não participava de algo tão fora do propósito artístico que permeou a minha carreira inteira, portanto, remetera-me aos tempos primordiais do "Terra no Asfalto", a única banda cover em que atuei na minha vida, mas isso fora lá nos longínquos anos de 1979 a 1982, ou seja, época em que eu iniciei a minha trajetória, e nesses termos, foi válido participar desse tipo de banda com tal propósito não autoral. 

Ao ponderar por um outro lado, seriam datas a serem cumpridas em festas obscuras, que nada poderia ferir a minha imagem ou autoestima (e claro que estendo o raciocínio também ao pensar nas personas de Kim Kehl e Carlinhos Machado). 

Outros pontos para se analisar: seriam realizados em datas onde não tínhamos compromissos com os outros trabalhos, e o cachê oferecido, mostrou-se bom, portanto, se tratado como algo avulso, e que nada teria a ver com as atividades dos Kurandeiros, Nudes, ou com a Magnólia Blues Band, nós pensamos: "que mal haveria ?"

Portanto, computado como um combo secreto, recebeu o nome de: "Koveiros", uma invenção engraçada da parte do Kim Kehl, a denotar o caráter nada nobre, mas necessário pelas circunstâncias. Além do fato de que a letra "K", ao invés do "C", insinuava uma maliciosa conotação com o "KK & K" e também uma criativa menção ao fato da banda tocar "covers", exclusivamente. 

Já sobre o tecladista, Claudio "Cazão" Veiga, este era um rapaz bem comprometido com esse circuito obscuro do underground, e assim acostumado a lidar com contratantes desse patamar, e a contar portanto, com bastante opções em seus contatos pessoais. 

Claro, é preciso ter bastante resistência para enfrentar tal circuito. Ao considerar-se que não é o nosso métier, não é nada fácil enfrentar as agruras típicas dessa zona abissal da música, mas para quem está acostumado, e não tem preocupação em forjar uma carreira autoral séria, não molesta em nada a dignidade de ninguém. 

No caso dessa atuação dos Koveiros em 2014, foram duas oportunidades que o Claudio aventou para nós, em junho desse ano e portanto, a coincidir com o andamento da Copa do Mundo.

No primeiro caso, foi uma aventura e tanto, ocorrida em uma festa particular, marcada para uma residência localizada em Embu das Artes, município da Grande São Paulo. Cidade relativamente distante da capital, ainda que unida pela grande mancha metropolitana da capital e as suas trinta e nove cidades unidas em volta, lá fomos nós. E o tal endereço não seria exatamente dentro do centro da cidade, mas em um bairro de periferia desse município, localizada em um condomínio fechado e fora do perímetro urbano.

Portanto, foi difícil achar o local, já a denotar que seria um dia longo. Quando chegamos, vimos tratar-se de uma residência muito ampla e confortável, onde o proprietário parecia estar seriamente comprometido com a ideia de dar o máximo de sua hospitalidade para seus convidados, e logo que viu-nos a estacionarmos e a descarregar os instrumentos de nossos respectivos automóveis em particular, ele não soube o que fazer para recepcionar-nos, da melhor maneira possível.

Foi uma reunião marcada para assistir a abertura da Copa do Mundo e consequentemente, o jogo Brasil x Croácia, inaugural do torneio. O rapaz havia contratado um surpreendente equipamento de P.A., e um trio nordestino para tocar forró antes de nós. Quando chegamos, o trio estava a tocar, e assim a entreter as pessoas que dançavam e divertiam-se. Havia uma mesa fartíssima, pela qual fomos convidados a servir-nos, com comida e bebida a vontade, portanto, o lado bom da hospitalidade fraternal, também sinalizava o lado mau que estava a caminho, com a bebedeira inevitável e conflitos inerentes, principalmente se o Brasil perdesse o jogo. Fomos orientados a assistir o jogo, e nossa atuação seria no pós-jogo, reta final da festa.

O dono da festa / residência, senhor Ari (a usar camiseta da seleção brasileira), e a apresentar as duas bandas, Os Koveiros e o trio nordestino de baião / xote, aos seus convidados, na segunda foto. Acervo e cortesia de Kim Kehl. Click: Lara Pap

Contudo, o dono da residência surpreendeu-nos um instante antes do jogo começar, quando convocou-nos para que perfilássemo-nos diante do imenso telão onde o jogo seria exibido, perante os seus convidados e fez um discurso inflamado sobre estar orgulhoso por ter contratado uma banda com alto gabarito para abrilhantar a sua festa, e que éramos "artistas de verdade" etc. Foi o tal negócio: o rapaz não era do meio, não fazia a menor ideia de quem éramos, ou o currículo pessoal de cada músico ali presente, mas o seu respeito foi absoluto.

Carlinhos Machado & Luiz Domingues no dia do evento, na referida residência particular. Click de Lara Pap

Mesmo sendo um leigo total nesse mundo, ele contratou um equipamento muito digno (e surpreendente, até), pagou-nos régia e antecipadamente com dinheiro vivo, tratou-nos com o máximo de simpatia, ao abrir a sua casa e ao nos ofertar a sua mesa farta, à vontade. 

Em contrapartida, essa manifestação dele remeteu-me ao contraponto, ou seja, quantos pilantras do meio musical que não agem assim com artistas, e nesse caso, a resposta é óbvia: por faltar-lhes a hombridade. Homem simples, com raciocínio prosaico, mas com um caráter a toda prova, fez com que eu  refletisse em torno de suas atitudes, sobre o quanto surpreendemo-nos na vida, pois se aquilo fora uma atuação secreta para nós, portanto sem relevância artística, para ele, tratou-se de um acontecimento memorável, e de sua parte, todo o esforço para fazer dar certo, foi notável, sem contar a lisura em proporcionar-nos todo o suporte e a cumprir a sua palavra, ipsis litteris.

Ora, o contraste com o glamour da música em outros patamares mais elevados, e a sua inevitável quantidade de pilantras e sanguessugas inerentes, tornou-se uma comparação inevitável.

Bem, o Brasil venceu o seu jogo com uma boa ajuda do árbitro, nós tocamos e divertimo-nos como se estivéssemos a brincar em um ensaio. As pessoas ficaram muito bêbadas, muito mesmo, com direito a alguns vexames para causar-nos a sensação da vergonha alheia, mas c'est la vie... a raça humana é etílica em predominância, infelizmente. 

Saímos da residência do rapaz, por volta das dez da noite e após um pouco de confusão para achar o caminho para o centro de Embu das Artes, finalmente achamos a trilha correta e retornamos à Pauliceia.  

Alguns dias depois, uma outra data para os "Koveiros", avistou-se.

Desta feita, tratou-se de uma festa organizada por um moto-clube, em um bairro periférico de São Bernardo do Campo-SP, no ABC paulista. Mais condizente com nosso temperamento, por ser mais Rocker e não tão insólito como uma festa realizada em casa de família, pareceu-nos mais confortável para atuarmos.

Coincidiu com uma nova partida do Brasil pela Copa do Mundo, desta feita, em jogo válido pelas oitavas de final do torneio, contra a seleção do Chile. Portanto, deslocar-se em dia de jogo não seria a prática mais adequada a realizar-se e a depender do resultado, até seria uma prática perigosa, enfim. Quando partimos, o jogo estava na prorrogação e quando aproximamo-nos da cidade de São Bernardo do Campo-SP, pelas reações das pessoas pelas ruas e pela explosão pirotécnica, deduzimos que o Brasil houvera ganho na disputa em pênaltis.

À medida que nos afastamos do centro de São Bernardo, e entramos na sua periferia, vimos cenas estarrecedoras em tom de euforia desmesurada. Adolescentes faziam manobras arriscadíssimas em motos, a demonstrar embriagues absoluta, ou pela ação química por conta do uso de drogas, com alto teor de anfetaminas, ou ambas. Pior que isso, vimos rapazes a portar armas de fogo, a dar tiros a esmo para o céu, com o intuito de extravasar a sua suposta "alegria", pela vitória da seleção brasileira...

Em um determinado cruzamento, onde paramos no semáforo vermelho, vimos algo terrível. Uma mulher usava um telefone público, quando dois adolescentes aproximaram-se e pela movimentação, deu-nos a impressão de que estavam a molestá-la, pois vimos que essa mulher saiu a correr e então, sob uma fração de segundo, o orelhão explodiu! 

Naturalmente, ela saiu a correr quando percebeu que os dois marginais haviam colocado uma bomba, com a real intenção em explodir o equipamento telefônico. A pergunta foi: se ela não tivesse percebido a tempo, teria morrido ou ferido-se com muita gravidade, no mínimo, não é? 

Por todos os lados, nos deparamos com carros munidos por sistemas de som ensurdecedores, a tocar o tal do "Funk", com letras absurdas, de um baixíssimo teor, a evocar o sexo explícito e/ou apologia ao crime. Claro que eu sabia que o Funk que toca à exaustão na mídia mainstream e que nós achamos escandaloso, é "Beethoven", perto do subsolo do underground desse mundo sórdido (se é que existam divisões inferiores para o subsolo mais profundo da subcultura de massa), mas confesso, fiquei muito triste ao constatar que sim, abaixo da mais baixa camada abissal, ainda havia um subsolo mais degradante.

Esse choque de realidade deprimiu-me, é claro. Todavia, de nada adiantou ficar a lamuriar, e a vida seguiu. 

Chegamos enfim ao local da sede do Moto-Clube em questão, e o lado bom foi evidente. Moto Clube, por menor e mais simples que seja, tem uma característica padrão: segue um código de ética interno, que é exemplar. O nível de educação e respeito que tais associações professam como regimento interno, é notável. Encravado em um bairro muito simples de periferia, ali, entre os seus domínios, poder-se-ia deixar o vidro de seu carro aberto, pois não haveria a menor possibilidade de nenhum objeto desaparecer de seu interior. O tratamento de extrema simpatia que foi nos ofertado, seguiu tal fama dessas agremiações, sem dúvida alguma. O único senão, foi que houve uma longa espera pela apresentação, pois o evento atrasou o seu início, devido a problemas técnicos com o equipamento.

Haveria várias bandas cover no cardápio oferecido, e o palco estava montado em uma praça pública em forma de um largo natural e sem saída, cercado por montanhas verdejantes. Mesmo com a presença de habitações simples e típicas de periferia, para conferir aquele aspecto sombrio de carência, a proximidade com a vegetação, amenizara tal impressão e o ar tinha o frescor de uma região serrana, e de fato, aquela natureza faz parte da Serra do Mar, pois São Bernardo fica nesse limite do caminho para o litoral do estado. 

Foi desgastante esperar pelas apresentações e entre elas, uma bem longa, perpetrada por um "Ramones Cover", e que perdoem-me os leitores que apreciam tal banda norte-americana, mas ninguém merece duas horas dessa música pobre, sob tal baixo nível musical, nem do artista original, quanto mais um xerox. 

Koveiros em ação, no evento produzido pelo Moto- Clube "Parceiros do Raul, em 28 de junho de 2014, na cidade de São Bernardo do Campo / SP. Da esquerda para a direita : Luiz Domingues; Claudio "Cazão" Veiga; Carlinhos Machado (na bateria) e Kim Kehl. Foto: Lara Pap

Tocamos e as nossas interpretações das canções dos Rolling Stones e Creedence Clearwater Revival, agradaram em cheio aos presentes nesse evento, em sua maioria, motocliclistas que tendiam a apreciar o Classic Rock, sem firulas. Gente simples, mas hospitaleira, sincera e muito honesta.

Artisticamente nada acrescentou-nos tais apresentações, tanto que o combo dos Koveiros foi (é) uma iniciativa secreta, e com o único objetivo de ganhar dinheiro, todavia, eu fiz questão de mencionar as duas ocorrências, ao abrir um capítulo específico, pois foram lições importantes que computei, ao meu ver. 

Não aconteceram mais apresentações dos Koveiros doravante, mas em qualquer momento, podem ocorrer, e agora eu sei, sempre existirá a possibilidade em surpreender-me em algum aspecto. A festa na residência, ocorreu em 12 de junho de 2014, com aproximadamente oitenta pessoas presentes. Já a apresentação no Moto Clube Parceiros do Raul, foi em 28 de junho de 2014, com trezentas pessoas mais ou menos na audiência.

Um novo trabalho avulso, novamente dentro do espectro dos Kurandeiros de Kim Kehl, surgiria nesse ano de 2014.

 

O próximo trabalho avulso foi inusitado, pois apesar de apresentar a formação dos Kurandeiros, como protagonista, na verdade acompanhamos um artista do mundo do Blues e gerou uma boa história. Para aumentar a estranheza, ocorreu em um festival onde no mesmo dia, Os Kurandeiros apresentaram-se, também...

Continua...

 

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