domingo, 31 de maio de 2015

Autobiografia na Música - A Chave do Sol - Capítulo 307 - Por Luiz Domingues



Nessa segunda visita, Rubens e Beto interagiram. O Beto sempre foi bastante extrovertido, era de seu temperamento, normalmente e assim, representara teoricamente, o melhor entre nós quatro, para socializar. Eu tendo a ser formal e discreto, sempre. Dificilmente estabeleço uma amizade instantânea, a não ser que as pessoas com as quais eu esteja a interagir, tenham enorme compatibilidade de ideias & ideais, quando, aí sim, costumo interagir com entusiasmo e desenvoltura.

O Rubens também era circunspecto, mas não tão fechado quanto eu. Ele detinha uma característica pessoal por um fator de educação familiar, ao exercer o extremo cavalheirismo em situações sociais, e até exagerava um pouco, ao chamar a atenção pelo excesso de palavras não coloquiais nos cumprimentos, todavia, claro que não estou a reclamar, pois quem me conhece, sabe que aprecio valores de boa educação & cidadania, e nesse quesito, ele portava-se como um diplomata em meio à cerimônias oficiais.

Já o Zé Luiz, era educado, mas bastante despojado. A sua maneira de se colocar, era sempre coloquial, sem afetações, mesmo quando estávamos em alguma situação de glamour, em meio à  fãs e/ou jornalistas, portanto, jamais se sentia inibido em tomar uma atitude em público, coisa que para mim que sou muito mais retraído, sempre foi bastante complicado (a não ser no palco, onde com exceção dos primeiríssimos shows da vida, no longínquo ano de 1977, nunca tive problema algum em falar ao microfone, e não importa o número de pessoas que estivessem a fitar-me).

Dessa forma, o Beto fora realmente o mais adequado para estabelecer uma relação imediata de simpatia e os demais poderiam conduzir conversas posteriores com uma outra desenvoltura.

No entanto, houve um dado bastante óbvio nessas visitas: ali não era um lugar ideal para empreender visitas sociais, e pelo contrário, a nossa presença haveria de ser basicamente um estorvo. Sinceramente, hoje em dia eu valorizo ainda mais a predisposição d'Os Inocentes em ajudar-nos, pois foi muito inadequado convidar pessoas que nada tinham a ver com a sessão de gravação em si, para tumultuar o ambiente.

Ali era um ambiente de extrema concentração, foco e ainda mais com a agravante de ser um estúdio terceirizado e bastante caro, mesmo ao considerar-se que naquela época, as gravadoras majors trabalhavam com bastante fartura financeira, para dar as melhores condições possíveis para os seus artistas. Eu, particularmente, quando vou gravar um álbum, quero o máximo de privacidade e tirante os companheiros da banda e os técnicos envolvidos, não acho conveniente a presença de mais ninguém.
O baixista/guitarrista d-Os Inocentes, Ronaldo Passos, um rapaz extremamente gentil e solidário

Entretanto, Clemente e Ronaldo estavam realmente empenhados em nos ajudar, e deixo aqui o meu agradecimento público, embora tenha externado isso à época, para ambos, naturalmente. Porém, foi na terceira visita que algo muito emblemático ocorreu e nesse dia, a percepção foi toda do Zé Luiz, que foi muito perspicaz...

Nesse dia, eu não fui ao estúdio, mas o Zé Luiz esteve lá com o Rubens. Nessa altura, o clima estava mais descontraído com a produção e dentro daquele caráter comedido e básico para não tumultuar, já houveram pequenos diálogos e momentos de descontração, com brincadeiras e piadas, a denotar uma maior proximidade. Todavia, se houve um contato maior, não posso afirmar de forma alguma que tenha sido o suficiente para estabelecermos amizade, propriamente dita, com Peninha e Liminha.  O fato de rirmos das piadas, e eventualmente nos sentirmos aptos para tecer comentários nesses momentos lúdicos, não caracterizara de forma alguma que "estávamos inseridos na turma", enfim.


A realidade era muito adversa e ao ver hoje em dia, percebo que ali a confraria era 100% fechada naquela estética versada pelos seguidores do Pós-Punkl, e fim de conversa. Apenas olhar-nos e  verem as nossas cabeleiras setentistas, estávamos estigmatizados como antiquados, e simplesmente fora de qualquer possibilidade de sonhar em fazer parte do mundo mainstream oitentista.

Então, quando decidiram encerrar aquela sessão, o Zé Luiz ouviu o Liminha a comentar que precisava sair rápido para o aeroporto de Congonhas, pois detinha um compromisso no Rio de Janeiro, ainda parta aquela noite. Rápido na perspicácia, o Zé Luiz afirmou que estava de saída para ir à casa de sua irmã, na zona sul, perto do aeroporto, e que oferecia uma carona com prazer para ele, Liminha. Pura mentira, pois a Elizabeth Dinola, irmã do Zé Luiz que morava em São Paulo, na verdade residia em Pinheiros, na zona oeste da cidade, mas a manobra do Zé Luiz foi genial, em promover uma ação de camaradagem e mais que isso, quem sabe aproveitar para  falar mais incisivamente sobre a nossa banda.

Então, lá foi o incensado Liminha, ex-baixista dos Mutantes nos anos setenta, e celebrado produtor musical nos anos oitenta, a bordo da famosa Kombi de propriedade do João Dinola, irmão do Zé Luiz, e veículo esse que tantas vezes auxiliou a nossa banda, desde o início de nossas atividades, em 1982. A falta de glamour em andar em uma Kombi com carroceria aberta, não causou nenhum constrangimento ao celebrado produtor, que era sem dúvida, o maior do Brasil na ocasião.

No caminho, ao tentar usar da estratégia de despojamento, o Zé Luiz, no início do caminho, só falou amenidades sobre o trânsito, meteorologia e esperou um tempo para comentar sobre as sessões de gravação d'Os Inocentes, que presenciara. Quando a conversa  fixou-se em música, o Zé Luiz sacou do porta-luvas da Kombi, uma cópia da nossa demo-tape e a colocou sutilmente para tocar, mas sem forçar nenhuma conversa, inicialmente. O assunto fluiu e o Liminha perguntou se aquele som era de nossa banda, e limitou-se a falar muito timidamente que era "bacana".

Pura balela, pois é evidente que aquele som não lhe dizia absolutamente nada. Naquela altura dos acontecimentos, a sua mentalidade como produtor estava cristalizada há tempos, em termos de uma estética 100% calcada na estética Pós-Punk e os seus derivados, e nesses termos, pelo contrário, uma banda a soar setentista, com solos de guitarra e cozinha sofisticada, devia incomodá-lo muito.

Ao ignorar retumbantemente a audição que o Zé Luiz estava a promover veladamente no toca-fitas da velha Kombi, na reta final da viagem até o aeroporto, Liminha jogou a pá de cal sobre as nossas parcas esperanças, ao iniciar um discurso inflamado sobre a banda que ele mais adorava naquele "momentum 1986": "Camisa de Vênus"...

Praticamente uma banda Punk, bem tosca, ainda que o seu líder, Marcelo Nova fosse influenciado pelo Rock'n' Roll cinquentista (e claro que isso em tese amenizaria bastante a tosquice dos rapazes, mas que na prática não ocorria), realmente não houve como convencê-lo de que o nosso som detinha possibilidades comerciais, que nos davam elementos para pleitear o mainstream. Nem vou elucubrar sobre o caráter "Pop" da demo que graváramos em abril, e com nítido teor mais comercial, pelo menos em nossa ingênua ótica. 

Claro que algumas canções poderiam tocar na programação das rádios, claro que algumas poderiam figurar em trilhas de novelas da Globo, é evidente que poderíamos aparecer no "Chacrinha", a dublar as nossas canções: "Saudade" ou "Solange"... mas na concepção do formador de opinião padrão dos anos 1980, não haveria espaço para tal hipótese, e a rudeza Punk daquela década, norteara a sua percepção de mercado.

Então, o Zé Luiz deixou o famoso produtor no aeroporto, e apesar de encerrar essa etapa com a sensação do dever cumprido, manteve-se frustrado com o rumo da conversa, é claro.

Ainda tentaríamos mais duas abordagens com a gravadora Warner, nesse ano de 1986. Éramos tenazes, não posso negar. Mais que tenacidade e/ou teimosia, acreditávamos no trabalho e apesar de estar nítido que produtores de gravadoras majors estavam fechados com uma estética avessa à nossa, achávamos que poderíamos dissuadi-los a nos enxergar com outros olhos, ao descobrir o lado Pop, que supostamente achávamos que detínhamos, em meio àquela seara árida, que mais parecia o set de filmagens do filme Mad Max.


E certamente que tivemos, mas infelizmente não éramos uma banda norte-americana, e São Paulo não era Los Angeles, portanto, não houve meios de uma sonoridade Hard-Rock emplacar comercialmente, ainda que fosse moderna, com roupagem oitentista. O Brasil era e de certa forma continua a ser, a nação que mais ama o Punk-Rock e os seus derivados.

Costumo brincar, a dizer que na minha opinião, a "Revolução Punk de 1977" não passa de um movimento pusilâmine, ou seja, detém esse apoio maciço dos brasileiros, por que a preguiça aqui impera, como dizia, Mário de Andrade.

Uma estética que tem como "pilar", a máxima de que saber tocar um instrumento não é algo necessário para ingressar-se em uma carreira musical, cai como uma luva para os preguiçosos, não é mesmo ?

Quanto aos Inocentes, tal gravou o seu disco (o EP, "Pânico em SP"), com uma qualidade de timbres bem interessante, graças ao empréstimo de meu baixo, e da guitarra do Rubens, e em contrapartida, além desse esforço em tentar nos "introduzir" na seara de uma gravadora major, nos proporcionou um bom dinheiro em título de aluguel dos instrumentos citados, pago regiamente pela gravadora.

Tal disco é considerado pelos críticos, como o melhor trabalho da carreira da banda, opinião compartilhada pelo próprio, Clemente. Portanto, fico contente por ter contribuído, mesmo de forma modesta, para esse êxito dos amigos Clemente e Ronaldo, com quem mais interagíamos. E sob um breve futuro, ambos ainda tentariam nos ajudar em outras circunstâncias, conforme eu relatarei no momento oportuno da cronologia. Mais para frente, falo também sobre outras investidas que fizemos na gravadora Warner, mais uma vez. 

Continua...

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