Teríamos o dia livre em Porto Alegre, de qualquer forma, mas com o cancelamento do show de Novo Hamburgo, antecipamos em muitas horas a nossa previsão de estada na capital gaúcha.
A casa onde tocaríamos se chamava: "8 1/2" e assim que eu conheci o seu jovem proprietário, a primeira questão que eu lhe perguntei, foi se o nome da casa teria a ver com o filme homônimo de Federico Fellini, e só pelo semblante do rapaz, já notei que ele apreciava o cinema, mesmo antes dele pronunciar alguma palavra, ao confirmar a minha suspeita.
Bem, claro que eu apreciei muito e sabia que o Rolando Castello Junior também gostaria dessa alusão explícita ao cinema.
O estabelecimento era bonito pelo fato de estar instalado em um velho casarão, outrora de uso residencial e aparentemente, sendo uma construção dos anos 1910 ou 1920, talvez pelo seu estilo arquitetônico.
Tudo isso foi muito bonito, visto pelo aspecto histórico, mas a casa não era a mais adequada para realizar shows de Rock. Apesar dos cômodos amplos e com pé direito alto, típicos de uma mentalidade arquitetônica antiga que privilegiava espaço, sobretudo, o fato foi que a construção fora concebida para ser uma residência, e claro que o arquiteto que a concebeu em 1910 ou 1920, jamais imaginou que um dia ali funcionaria um mini centro cultural a abrigar apresentações musicais, quanto mais com a eletricidade de um ritmo musical que só surgiria trinta ou quarenta anos depois da data em que a casa foi construída...
A despeito dessas dificuldades, o dono do estabelecimento, que era um rapaz jovem e bastante falante, estava muito empolgado, e como empresário, ele não mediu esforços para nos contratar para tocar na sua casa e nos dar as melhores condições possíveis.
O equipamento de PA contratado por ele, se mostrou simples, mas funcional para o tamanho da casa e não deixar-nos-ia em em situação ruim. A iluminação era fraca, mas estávamos resignados que ali faríamos dois espetáculos "intimistas", portanto, foi quase como fazer show no saudoso Teatro Lira Paulistana de São Paulo, onde a proximidade invasiva do público tornava o show um martírio para quem sofresse de "Stage Fright" (medo de palco).
Na primeira noite, nós teríamos a abertura de uma banda local, com um som completamente dispare, que saiu do padrão normal de bandas de Rock, e geralmente a militarem no campo do Hard-Rock.
Desta feita, a banda escalada era instrumental em essência e praticava uma espécie de Free-Jazz com muita técnica e volúpia. Chamava-se: "Blass".
Já no momento do soundcheck nos confraternizamos com os rapazes que usaram todo o nosso equipamento backline, e até uma Jam-session aconteceu, com o Marcello a tocar baixo e o Rodrigo aos teclados. Lembro-me que a banda deles era grande, com sete ou oito componentes, e além dos instrumentos tradicionais, haviam alguns sopristas em sua formação, o que lhes dava uma estridência extra.
O seu som era bastante violento, no sentido do ímpeto, praticamente a usar de uma pegada Rocker, fator nada usual entre jazzistas, digamos, mais puristas. Então, mesmo a professarem um som que beirava o Free-Jazz, eles tocavam como uma banda de Rock furiosa. Em suma, com toda aquela técnica e pegada, eram muito bons.
Claro, o som que faziam era direcionado para poucos aficionados e a se provar nada popular, portanto, mesmo ao estarem a tocar em seus domínios, a possibilidade de atraírem um público agregado, foi mínima.
Sendo assim, o produtor do show privilegiou a qualidade artística do evento, mas não pensou na sua melhor condução sob o ponto de vista comercial. Como músico, artista e entusiasta da arte & cultura, achei uma maravilha, mas comercialmente a falar, foi uma decisão equivocada, sob o ponto de vista gerencial, eu diria. Foi uma grande pena, pois não atraímos um grande público, e certamente que o som muito bom, porém anticomercial do "Blass", muito menos.
Apesar de estarmos diante de apenas quarenta pagantes, fizemos o nosso show habitual, e quem esteve ali presente fora para nos ver e apreciou muito a nossa performance. Fomos bastante assediados para cedermos autógrafos e em meio a uma casa sem estrutura de camarins, mesmo que não gostássemos e quiséssemos isso, seria inevitável. Mas claro que apreciamos esse carinho e foi sensacional.
Aproveito para retroagir um pouco e narrar que horas antes do show, quando chegamos ao estabelecimento, eu tive uma experiência das mais agradáveis, pessoalmente. Assim que chegamos, um rapaz que estava sozinho, encostado no muro do estabelecimento, abordou-me e ele ostentava em suas mãos, uma cópia do compacto d'A Chave do Sol, a minha querida banda durante os anos oitenta.
Ao se dizer emocionado por me conhecer, esse rapaz reivindicou o meu autógrafo na capa, e pediu-me mil desculpas por não poder assistir o show, visto ser um dia útil e isso prejudicar-lhe-ia bastante no dia seguinte, por ter que acordar cedo para trabalhar etc. Como não me emocionar com uma abordagem assim?
Aquela sensação ótima de dever cumprido, de que tudo valeu a pena e a carreira cumprira a sua função, a espalhar arte, cultura & emoção para a vida das pessoas, enfim... eu posso não nadar em dinheiro, não ser mega famoso em esferas populares da sociedade, não apareço nos programas populares da TV e nem sou citado em sites de fofocas a respeito de "famosos", porém, tenho a plena consciência de que angariei fãs e admiradores durante a carreira inteira, espalhados pelo país afora.
No dia seguinte, o dono do estabelecimento se mostrara contrariado com o resultado financeiro obtido na noite anterior e pediu-nos um abatimento no cachê acordado e fixo, com o qual nos prometera em São Paulo. No entanto, diferentemente da situação vivida em Novo Hamburgo-RS duas noites antes, nós percebemos nitidamente que o rapaz era um produtor jovem e ainda inexperiente em vários aspectos, e que ao não saber lidar com a realidade do show business, esteve diante de uma situação difícil.
Bem, claro que nessas circunstâncias muito diferentes, lhe demos um abatimento, visto que ficara patente que o rapaz se esmerara para fazer o melhor, mas faltou-lhe experiência para dar os passos certos e não errar na produção. Portanto, claro que ele mereceu uma oportunidade de nossa parte.
No dia seguinte, nós contamos com um público bem melhor e tal féria melhor quase tornou possível que o rapaz equilibrasse as suas contas e pagasse o nosso cachê integral, ainda que mediante um desconto generoso ofertado de nossa parte, e assim, sem ter que tirar do bolso para coibir o prejuízo.
Nesse segundo show, a banda de abertura foi orientada pelo Rock, portanto mais próxima da nossa sonoridade do que o Jazz instrumental e muito louco da observado pela banda da noite anterior.
Tal banda de abertura da segunda noite, chamava-se: "Suco Mau", e pelo que me lembro, os rapazes faziam algo muito próximo do Brit-Pop noventista, ou seja, iam na esteira daquelas bandas britânicas que resgatavam o bubblegum sessentista, quase que explicitamente.
Enfim, eu apreciei a sonoridade da banda e apesar de ter gostado muito a performance forte executada pela banda da noite anterior em meio à sua diversidade musical em relação ao nosso trabalho, claro que uma banda de Rock a resgatar sonoridades sessentistas em doses maciças me agradou muito mais, particularmente.
Sobre o nosso segundo show, este foi tão bom ou melhor que o da noite anterior, ao nos dar muita satisfação em manter esse contato com o público Rocker portoalegrense.
Apesar das dificuldades em se fazer shows em uma casa não muito apropriada para a prática do Rock e dos erros de estratégia do produtor, ainda que plenamente justificados, nós gostamos de cumprirmos os dois shows, sem dúvida alguma.
Os shows no bar "8 1/2", ocorreram nos dias 7 e 8 de maio de 2003, com quarenta e setenta pagantes, respectivamente.
Uma lembrança boa que guardo desses três dias que passamos em em Porto Alegre, aconteceu por uma dica do produtor do show, que aliás não mediu esforços para nos dar o máximo de conforto e hospitalidade nesses dias. Ele nos falou sobre uma tradição na cidade, que são as pastelarias uruguaias que existem aos montes em todos os bairros de Porto Alegre.
E de fato, muito perto da casa noturna, havia uma que frequentamos bastante naqueles três dias. Diferentemente das pastelarias paulistanas geralmente administradas por japoneses ou chineses, em Porto Alegre existe essa tradição de pastelarias abertas por imigrantes uruguaios, que apresentam uma receita diferente, muito peculiar e saborosa.
Tais pastéis apresentam os recheios clássicos dos pastéis convencionais, mas há algum elemento diferente na composição da massa que os torna diferentes e muito saborosos, fora a questão do molho que servem como acompanhamento, alguma coisa a conter ervas e azeite, que é muito saboroso.
Nada contra as pastelarias paulistas/paulistanas administradas por orientais e aliás, que são maravilhosas e inigualáveis para quem não conhece a cidade de São Paulo, mas essas geridas por uruguaios que moram em Porto Alegre, são diferentes e muito boas também.
Bem, dicas turísticas a parte, foi a hora para deixar a bela capital gaúcha e rumar para uma outra cidade, ainda dentro do Rio Grande do Sul. São Leopoldo-RS, onde já havíamos tido tantas alegrias no passado, nos aguardara novamente...
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